segunda-feira, 15 de junho de 2020

A MULHER QUE ESCREVEU A BÍBLIA


A voz feminina na escritura da Bíblia em
A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar

Maria do Rosário Andrade Chaves                 

A narradora e protagonista, para tentar solucionar um problema de relacionamento com o pai e com o homem que ama, procura ajuda de um terapeuta de vidas passadas. Ela se vê na corte do rei Salomão, envolvida em episódios bíblicos. Por ser feia e desejar o anonimato, é usado o adjetivo para nomeá-la.

Uma voz feminina se posiciona na defesa da voz da mulher

Este artigo tem como foco analisar o livro A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar, no que diz respeito à visão feminina no contexto em que a história se inscreve, na voz da narradora e personagem principal.
A fim de embasar teoricamente os pressupostos que norteiam a voz feminina como intermediária da narrativa, foram utilizados estudos e conceitos ligados à metalinguagem, ao dialogismo, ao humor e à carnavalização, teorias que se entrelaçam e se referem às relações de sentidos entre os enunciados, em que a palavra é sempre perpassada pela palavra do outro, dialogando com outras palavras, de acordo com as concepções desenvolvidas por Bakhtin (2011).

A VOZ FEMININA

A voz da narradora percorre toda a obra. Ela via aquele mundo, de séculos atrás, sob a perspectiva da mulher atual, por isso não concordava com a submissão das mulheres, obrigadas a se manterem constantemente preparadas para um possível chamado do rei. A feia também se revoltava com as péssimas condições em que viviam as concubinas mais velhas, descartadas após exercerem suas funções por muitos anos, desde a época de Davi, pai de Salomão. A sua voz surge em seus devaneios, nas reflexões acerca da vida, do amor, de Deus, assim como nas entrelinhas dos textos que escrevia de acordo com as instruções dos anciãos.
Judith Butler, a partir de ideias de Simone de Beauvoir, afirma que a mulher é conceituada pelo sexo - o sexo feminino - e que isso não a torna sujeito com uma identidade marcada. É preciso que se reconheça o feminino como um gênero, que seria o Outro, tendo em vista que o homem é reconhecido como um gênero universal. Dessa forma, restaria à mulher ser aquela que não é homem. E, além disso, a mulher é definida em relação ao homem e através do seu olhar.
O gênero universal ao qual Beauvoir se refere é uma construção que se estende até a atualidade, tendo em vista que, ao se referir ao ser humano, as pessoas dizem “o homem”, gênero em cuja instância a mulher se encontra inserida.
Quando a feia aprendeu a ler e escrever se tornou diferente, superior a todos aqueles, homens e mulheres, que não detinham esse saber. De forma que ela se transforma em mulher, como gênero, quando lhe é reconhecida essa diferença. A partir do momento que Salomão a incumbe da tarefa da escritura da história de sua gente, ela já não se acha mais tão feia, tem a certeza de que “descobria em mim uma oculta beleza, a beleza da inteligência, da cultura”.
A questão da identidade da mulher como gênero social e cultural pode ser vista nessa obra a partir das reflexões e atitudes da narradora. Antes de exercer a função de escritora da Bíblia, ela nada mais era que mais uma mulher na corte de Salomão. Para sua infelicidade, era uma mulher feia, com raras chances de ser chamada para passar a noite com o marido e consumar o casamento. Assim, nenhuma mulher, na época em que os fatos aconteceram, pensava em ser alguém, um sujeito com uma identidade. Para a sociedade, elas eram apenas objetos de desfrute do rei e de transações políticas e econômicas. “De acordo com a tradição e a lei”, um casamento consolidava uma aliança entre a Corte e a tribo, uma aliança política, uma vez que promovia proteção de ataques de tribos vizinhas e, além disso, as dívidas poderiam ser perdoadas ou renegociadas, de acordo com a conjuntura econômica. Era dessa maneira que as mulheres eram vistas e negociadas.
O diálogo, nas obras de Simone de Beauvoir, possibilita à filosofia reconhecer aspectos dos feminismos e colocá-los sob novos enfoques. Beauvoir se preocupava com a situação histórica das mulheres, considerando características de gênero, raça, etnia, classe social, participação política, opressão e alteridade, pois sabia que cada mulher vivencia suas próprias experiências de opressão e de exclusão. E é por meio do diálogo, expresso na escritura do livro de Salomão, que a mulher exerce um papel privilegiado naquela sociedade. E, embora não lhe fosse possível escrever como queria, era inteligente o bastante para se colocar nas entrelinhas dos textos, a fim de se fazer ouvir e tentar mostrar que a mulher precisava ser tratada com respeito.
Para escrever a história encomenda por Salomão, poderia usar o seu estilo, mas teria que se orientar pelo conteúdo ditado pelos escribas. “Eu fora derrotada, fragorosamente derrotada. Minhas esperanças de seduzir Salomão via texto tinham ido por água abaixo. Pior: agora os velhos assumiam o comando”. E ela não teria quaisquer chances contra eles. “Tudo que me restava era a submissão”.
A feia se via presa na corte, obrigada a escrever o que não queria. Almejava não somente a liberdade da palavra, mas sua liberdade como ser humano. Ao reconhecer que para Salomão ela era o seu projeto, a história que ele desejava eternizar, melhora sua autoestima, mas ao mesmo tempo ela não deixava de ser um meio, porque o seu papel não seria reconhecido, apenas o papel do rei.
Infere-se que a voz feminina perpassa A mulher que escreveu a Bíblia de forma constante, marcante, triste e firme em suas convicções, como um grito para mostrar a voz de todas as mulheres. Felizmente ela se cura, à custa de muita dor vivida no passado, e segue sua vida em liberdade.

A ESCRITA E A ESCRITURA

Nessa obra é recorrente o uso da metalinguagem, principalmente quando a narradora se refere à palavra, à escrita, ao texto, seus diálogos e sentidos, tendo em vista que a escrita havia mudado sua vida e lhe proporcionado uma forma de poder e de libertação. “Bastava-me o ato de escrever. Colocar no pergaminho letra por letra, palavra após palavra, era algo que me deliciava. Não era só um texto que eu estava produzindo; era beleza, a beleza que resulta da ordem, da harmonia”
Sobre seu relacionamento com o livro e Salomão, ela medita:
Escrever aquele livro não seria só uma realização para ele, seria uma realização para mim também. Templo eu jamais haveria de construir; mas a obra de que ele cogitava estava, sim, ao meu alcance, ainda que eu levasse toda a vida a escrevê-la. Nesse empreendimento estaríamos juntos, ele e eu. (...) O texto seria o refúgio em que habitaríamos, só ele e eu.


Ao primeiro narrador (o terapeuta) também pode ser observado o uso do recurso metalinguístico, quando ele busca a si mesmo na história, “procuro-me nos nomes próprios e nos nomes comuns, procuro-me nos verbos e nos advérbios, nos pontos, nas vírgulas, nas reticências. E não me acho. Assim como não me acho em lugar nenhum. Estou perdido”.
Com relação ao humor, de acordo com declarações do próprio Scliar[1], filho de judeu, nascido no Brasil, ele é uma particularidade do judeu. Scliar não seguia as tradições judaicas, embora tenha vivido em uma comunidade de judeus, em Porto Alegre. No seu livro A condição judaica, ele declara que “o humor peculiar do perseguido, que é uma defesa contra o desespero; (...) um humor de meio-sorriso, não de risos”. Percebe-se em A mulher que escreveu a Bíblia o humor perpassando a narrativa, muitas vezes de forma sutil.
O humor nessa obra é uma consequência da carnavalização que, segundo Bakhtin (2011), é a transposição do espírito carnavalesco para a arte, em que a palavra é representada e bivocal, em que se misturam dialetos, jargões, vozes e estilos, resultando em um romance polifônico.
Segundo Bakhtin (2015), entre as principais características do efeito carnavalesco, destaca-se o questionamento acerca da verdade, cujo conteúdo é a aventura de ideias; as discussões sobre questões relacionadas à morte e ao sentido da vida; a constituição do fantástico; o gosto pelas infrações às normas estabelecidas de conduta e de fala, em que surgem discursos cínicos, profanações desmistificadoras do sagrado e a presença de contrastes violentos. A linguagem não respeita limites, tornando-se obscena e excêntrica, permitindo que o reprimido possa ser exposto, tornando central aquilo que é marginal.
Além dos exemplos apresentados no decorrer deste artigo, pode-se perceber a subversão, ainda, quando a feia decide profetizar, projetar-se rumo ao futuro. Sua intenção é subverter a ordem na história de Salomão, uma vez que esgotara sua paciência em escrever sobre um passado repleto de dúvidas, em que havia grandes contrastes entre o povo e o rei em seu templo.
Outra marca relevante do efeito carnavalesco é a imagem grotesca do corpo em oposição à clássica, uma vez que no lugar de um corpo retratado pela beleza e proporções perfeitas, a narradora e personagem principal tem um rosto feio, com protuberâncias salientes, fato que sempre a deixara em uma condição marginalizada na comunidade em que vivia e, posteriormente, na corte do rei Salomão. Por outro lado, sua feiura lhe abriu caminhos, foi alfabetizada e se apaixonou pela escrita. De forma que a subversão, por meio do efeito carnavalesco, utiliza o poder da escrita dado a uma mulher.

RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE ENUNCIADOS

De acordo com Bakhtin (2011), a língua tem a propriedade de ser dialógica, mas não se refere ao diálogo face a face, e sim a todos os enunciados no processo de comunicação. A palavra é sempre perpassada pela palavra do outro, dialogando com outras palavras, assim como o enunciador, para constituir um discurso, considera o discurso de outro, presente no seu próprio discurso.
Dialogismo diz respeito às relações contratuais ou polêmicas, divergentes ou convergentes, de aceitação ou recusa, de acordo ou desacordo, estabelecidas para a solução de conflitos, promoção de consenso, busca de acordo ou entendimento. O discurso do outro pode ser inserido no enunciado de forma aberta (discurso direto e indireto, aspas e negação) ou por meio do discurso alheio não demarcado, em que as vozes se misturam, mas são claramente percebidas (discurso indireto livre, polêmica clara ou velada, paródia, estilização).
O terceiro objeto de estudo do dialogismo se refere ao sujeito, que se constitui em relação ao outro, apreende as vozes inseridas na sociedade em que o indivíduo vive e se relaciona. Na verdade, são várias vozes, tendo em vista que o sujeito entra em contato social em diferentes contextos.
Sobre o sujeito e sua função dialógica, Oliveira e Santos (2001) informam que o ato que produz a linguagem verbal é a enunciação (dizer), e o resultado é o enunciado (dito). Há que se fazer, ainda, a distinção entre o sujeito da enunciação, externo ao enunciado, e o sujeito do enunciado, interno a ele. Por exemplo, na frase: “O pastorzinho abriu a porta e desapareceu nas sombras do corredor”, o sujeito do enunciado é o pastorzinho, agente que pratica as ações; e o sujeito da enunciação é a narradora. Essas vozes ficcionais se misturam com uma voz que as agrega, que é a voz do autor, Moacyr Scliar.
A paródia com a Bíblia se apresenta logo no início da narrativa, no momento em que a narradora desqualifica o Gênesis, negando-o tanto por meio da linguagem coloquial, usada no século XX, quanto pelo conteúdo erótico, inexistente na Bíblia.
Há ainda uma paródia à parábola da semeadura quando ela se refere à enorme quantidade de sinais em seu rosto. Um vento muito forte poderia desprender as protuberâncias e levá-las para longe. “Se caísse entre pedras feneceria, se caísse na areia do deserto feneceria, se caísse na cratera de um vulcão feneceria – e ele fenecendo eu só me alegraria, mas se caísse em terra fértil...”.
E, finalmente, uma alusão ao verso do poeta Vinícius de Moraes “as feias que me desculpem, mas a beleza é fundamental”, que introduz o poema “Receita de Mulher”, se dá quando a mulher diz que “a feiura é fundamental, ao menos para o entendimento desta história. É feia, esta que vos fala. Muito feia”.



CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em A mulher que escreveu a Bíblia observa-se uma grande habilidade e empatia do escritor ao se colocar no lugar de uma mulher e elaborar sentimentos como se mulher fosse. A identidade feminina foi bem colocada como sujeito de um gênero que busca participar da história em que tinha um papel, pequeno, mas conquistado por meio da escrita e de sua perspicácia, identidade inserida em uma sociedade que a oprime e a exclui.
O papel submisso da mulher é colocado social e culturalmente na sociedade da época do rei Salomão e se apresenta como uma luta da narradora para se fazer ouvir e ser respeitada, valendo-se de sua posição, naquela época, para evocar sua voz de forma contestadora.
A escrita, a palavra e o texto, elementos destacados pela narradora, apresentam-se na medida certa para pontuar a importância do texto para escritor/leitor, já destacado no título do livro com o verbo “escrever”, e ressalta a relevância do conhecimento que a leitura proporciona. O ato da escrita e seus desdobramentos como texto, linguagem, diálogo, livro, sentidos, voltam-se ao próprio texto no movimento circular que a metalinguagem promove, a fim de destacar o poder e a libertação que a escrita proporcionara à narradora.
De acordo com o livro sagrado, a mulher foi criada a partir de uma parte do homem. Esse fato pode explicar como, já no contexto mitológico da criação do mundo, à mulher cabia um espaço secundário na sociedade. A visão machista se inscreve, portanto, na Bíblia, embora não exista confirmação científica para tal afirmativa. Assim, a subversão efetivada através da voz feminina estabelece um dos efeitos carnavalescos, uma vez que é essa voz que constrói e dialoga no texto.
O diálogo é marca constante nessa obra de Scliar porque todos os enunciados promovem a comunicação entre a narradora e o leitor. Assim, as relações de sentido que se estabelecem entre os enunciados estão presentes na voz feminina, por meio de uma linguagem que, submetida a ordens rígidas, inverte-se para processar uma mudança.
Considerando-se, ainda, a relevância da escrita da Bíblia e o próprio ato de escrever ressaltar a importância da palavra e do texto, pode-se inferir que a escrita fez com que a narradora refletisse sobre seus problemas e encontrasse as respostas para eles.  Dessa forma, ela encontrou a solução dos seus problemas tanto na vida passada quanto na real e seguiu o seu caminho.
Infere-se que a voz feminina é a que se destaca em A mulher que escreveu a Bíblia, ainda que o gênero universal, o masculino, englobe o feminino. A voz feminina, geralmente deixada à margem, se coloca à frente da narrativa, questionando sua trajetória na provável vida passada na corte do rei Salomão.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
BRAIT, Beth (org). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. São Paulo: Beca Produções Culturais Ltda, 1999.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006
KOCH, Ingedore Vilaça, BENTES, Ana Cristina e CAVALCANTE, Mônica. Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2012.
MEDEIROS, Fernanda. Dialogismo e ironia em A mulher que escreveu a Bíblia. Disponível em < www.pos-graducacao.bib.uepb.edu.br/ppglif/...2014/Fernanda Medeiros.pdf> acessado em 16 set. 2015>
SANTOS, Luis A. Brandão. OLIVEIRA, Silvana Pessôa de. Sujeito, tempo e espaço ficcionais: introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SCLIAR, Moacyr. A mulher que escreveu a Bíblia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SCLIAR, Moacyr. A condição judaica. Porto Alegre: L&PM Editores, 1985.
SCLIAR, Moacyr. Judaísmo: dispersão e unidade. São Paulo: Ática, 2001.
SCLIAR, Moacyr. O texto, ou: a vida – uma trajetória literária. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.



[1] Em seu livro autobriográfico O texto, ou: a vida – uma trajetória literária, Scliar fala da importância da escrita e da leitura em sua vida. Por isso, a referência constante ao texto é uma característica que o autor colocou em sua personagem e narradora.

ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA LITERATURA-Conhecimento prático - ed. 69 (2017 ou 2018)

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Barba ensopada de sangue


Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera, narra a história de uma família que atravessa três gerações de homens. O avô, exímio nadador, é tido como morto em uma pequena cidade de Santa Catarina, Garopaba. Seu filho se mata anos depois. Seu neto se muda para a mesma cidade em busca de uma nova vida e da história do desaparecimento do avô.
O ambiente da narrativa é sempre tenso e misterioso. Existe na cidade um mito em relação a Gaudério, avô do protagonista. O rapaz tem um problema particular, ele não consegue memorizar rostos, inclusive o seu. Para reconhecer as pessoas, cria alguns recursos: gravar a voz, algum detalhe do cabelo, altura, o modo como a pessoa se movimenta, enfim, detalhes que passariam despercebidos pela maioria das pessoas.

A história de Gaudério, assim como a do professor, como é identificado o protagonista, também pode ser considerada mítica, pois foi passada de boca em boca, fazendo parte da história de Garopaba e do imaginário de seus cidadãos. O mito tem o seu lado fantástico em diversas passagens, dentre elas uma lenda a respeito de um tesouro. Há também uma curiosidade em relação a sua cachorrinha, Beta, que fica mancando depois de um acidente e aprende a gostar de nadar no mar, junto ao seu dono.

O protagonista também é um homem solitário. É generoso e gosta de cultivar amizades, mas privilegia seus momentos de solidão com caminhadas, natação e a convivência com a cadela Beta, deixada por seu pai.

A narrativa é feita em terceira pessoa. No entanto, é como se o protagonista fosse o narrador, uma vez que ele não é onisciente. O que sabemos dos outros personagens são diálogos ou situações contadas pelo narrador, sempre na presença do protagonista, que nos fornece as pistas dos seus processos de reconhecimento, assim como suas reflexões acerca de uma série de fatos que muito marcaram sua vida. O seu eu que não se reconhece exteriormente pode também lhe causar algum constrangimento.

O destino e as intuições estão presentes na vida do professor. A mãe de Dália, sua namorada, tenta alertá-lo a respeito de fatos que aconteceriam no seu futuro e que surgiam nos sonhos dela. O protagonista também tem muitos sonhos, momentos em que eles parecem ser bastante reais e costuma o assustar. Certa vez prevê que sua ex-mulher, Viviane, que o havia traído com o irmão, surgiria anos depois na sua frente para avisá-lo que estava grávida do irmão. Prevê também que morreria afogado no mar.

Todos esses homens passaram por momentos de solidão por motivos diferentes. O pai do protagonista se mata e, antes de cometer o suicídio, revela ao filho, em último encontro, que já está determinado a sair da vida, cansado e doente.  Ele se vê impotente para levar uma vida cheia de restrições e sem prazeres.

Nesse encontro, o pai pergunta ao filho se havia lido o conto O sul, de Borges. Como o protagonista não tem o hábito de ler, o pai não fala mais no assunto. Esse conto se refere a uma visita ao passado, a um avô morto em uma batalha. Trata ainda da morte, das circunstâncias em que ela acontece, refletindo-se qual seria a melhor. O conto poderia explicar ao filho, de forma romanceada, os motivos que levaram o pai a lhe contar sobre a morte do avô e seu desejo de se matar.

De acordo com a obra Os segredos da ficção, de Raimundo Carrero (2005), “o autor do romance moderno sai de cena para conceder prioridade ao personagem. As luzes estão sobre ele, que é construído pela cena e por outros personagens, até alcançar o leitor, estabelecendo-se aí a pulsação narrativa, que é resultado das pulsações do personagem, da cena e do leitor. Nesse processo, ocorre a interação entre narrativa e leitor, que entra na pulsação do texto, devolvendo ao texto a sua paixão de leitor”.

O clima de solidão e da história da saga de uma família, me fez lembrar a obra Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marquez, que li há muitos anos atrás e me deixava uma sensação de opressão e até de desorientação em vista dos nomes repetidos de geração em geração. Já Galera deixa sensação parecida no protagonista que, muitas vezes, se perde no reconhecimento de pessoas com as quais mantém boas relações e nas reflexões sobre vida, amor, felicidade e morte. Há nas duas obras referências a muitos mitos e lendas. Há muitas diferenças, é claro, principalmente por conta do conteúdo político e histórico da Macondo de Garcia Marquez.


Somente depois de terminado o livro, percebemos que a sua introdução foi feita pelo sobrinho do protagonista, filho do seu irmão e de Viviane. Nota-se que o mito de Gaudério é substituído pelo mito do protagonista. O caráter cíclico do mito é evidenciado quando o sobrinho revela ter o mesmo interesse que o protagonista em descobrir a verdade sobre a história contada: os mitos se repetem.

Em uma entrevista ao JC, Daniel Galera diz:
“Desde o princípio do trabalho, eu queria que o romance explorasse de maneira implícita a questão filosófica da responsabilidade humana em uma visão de mundo determinista, segundo a qual tudo que acontece é apenas resultado inevitável do que aconteceu logo antes. É um assunto que me interessa. Mas eu não queria tratar disso de maneira demasiadamente explícita. No final, a discussão vem à tona no diálogo do protagonista com a ex-namorada e para mim tudo está resumido nessa fala que foi destacada: Ninguém escolhe nada e mesmo assim a responsabilidade é nossa. Essa aparente contradição me parece conter uma verdade preciosa. O protagonista do romance é um veículo dessa perspectiva dentro da história do livro, mas assim como ele, eu não possuo uma resposta satisfatória para o dilema. Eu gosto da pergunta.

Minha intenção era que a história de desenrolasse de um ponto de vista colado à visão do protagonista, mas em terceira pessoa. Acho que esse recurso dá uma sensação interessante de ação acontecendo em tempo real. Foi uma escolha que me pareceu ter sintonia com a história, com o teor dos temas tratados, com a incapacidade do personagem de lembrar rostos humanos e com o tipo de impressão estética que eu pretendia causar. Por isso a narrativa em terceira pessoa no tempo presente, e também o uso das notas de rodapé para acolher os poucos flashbacks, mensagens e pontos de vistas externos ao protagonista. E do meu ponto de vista, a prosa nem é tão direta assim. Tem umas firulas no livro”.

Perguntado se havia referência autobiográfica na obra, Daniel diz que a mistura de vida do autor e temática dos romances não é uma obsessão da literatura contemporânea e sim uma obsessão do leitor contemporâneo (e da crítica, e da imprensa cultural, etc.). Na literatura isso sempre foi comum, é quase inevitável. Qualquer artista parte da experiência subjetiva e da sua visão de mundo particular para criar. Não há como ser diferente. Isso não é a mesma coisa que autobiografia ou autoficção, narrativas em que o vínculo da história com a realidade é assumido e enfatizado. Não é o caso do Barba ensopada de sangue. Meu romance tem vários pontos em comum com detalhes da minha experiência pessoal, desde a própria ambientação em Garopaba, onde vivi por um tempo, até a paixão do protagonista pela natação, mas o enredo e os personagens são em maior parte fictícios.

Sobre a possibilidade de que a releitura do primeiro capítulo dê ao romance uma nova perspectiva, Daniel responde: o que me interessava era investigar como uma vida prosaica e anônima pode se converter em mito ou lenda numa pequena comunidade. A isso, soma-se o tema da família e suas relações com a identidade pessoal. O avô do personagem se tornou um mito local e isso começa a acontecer também com o neto na medida em que ele procura investigar a verdadeira história do avô. A ideia era justamente essa, que a breve introdução do livro pudesse ser compreendida de outra maneira após o fim da leitura, comentando essa espécie de transmissão do mito em uma narrativa que não tem nada de mitológico no seu decorrer, até pelo contrário.



sábado, 8 de julho de 2017

Resignação - Clarice Lispector

Clarice Lispector - 1947, Berna – Suíça

“Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro... Há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma em boi. Assim fiquei eu... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você, sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único meio de viver. Juro por Deus que, se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida e iria para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma”


Em 95, o escritor Caio Fernando Abreu, então colunista do jornal O Estado de São Paulo, publicou uma carta que teria sido escrita por Clarice Lispector a uma amiga brasileira. Ele comenta, no artigo, que não há nada que comprove sua autenticidade, a não ser o estilo-não estilo de escrita de Clarice Lispector. Ele dizia: "A beleza e o conteúdo de humanidade que a carta contém valem a pena a publicação..."

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

OS ENAMORAMENTOS

“[...] há quem pense que o enamoramento é uma invenção moderna saída dos romances. Seja como for, já temos a invenção, a palavra e a capacidade para o sentimento.”

Em Os Enamoramentos, de Javíer Marias, narrado por María Dolz, encontram-se outras vozes, sejam para ratificar suas especulações ou para lhe revelar outras perspectivas. A sua voz aponta uma série de hipóteses a respeito da vida, dos fatos em que se vê envolvida, do amor, das ilusões e traições. Por meio de suas conjecturas, que na maioria das vezes revelam o que realmente acontecia, surge o relato e a capacidade das pessoas em fantasiar situações que não conhecem.

O livro, além de apresentar questionamentos acerca do amor e da paixão, é rico em intertextualidade (Balzac, Shakespeare, Cervantes e Zola), assim como a fatos históricos relativos à corrupção, a guerras e à justiça. Há, ainda, discussões relacionadas às obras de ficção.

Interessante a protagonista trabalhar em uma editora, criticar escritores vaidosos e utilizar a palavra escrita com maestria, sugerindo a possibilidade de ter escrito este livro. Ela faz, ainda, algumas críticas à literatura, ironizando o fato do trabalho literário não ser considerado um trabalho de fato.

María observa tudo detalhadamente. Utiliza advérbios condicionais e verbos no subjuntivo para que o leitor saiba que ela está especulando, refletindo, diante de situações que, a princípio, não se ligavam à sua vida. Ela consegue, ainda, refletir sob a perspectiva de outra pessoa, o que ela poderia estar pensando ou como deveria estar agindo.

Faz algumas considerações sobre a distância entre a pessoa que delega a outra um assassinato ou determinações políticas. Quem manda não se considera uma pessoa cruel ou manipuladora. Fala também sobre a morte, “que tudo continuará sem nós, que nada para porque um desaparece”. “A única coisa verdadeira e, além disso, definitiva, é o que aquele que vai morrer vê ou crê imediatamente antes da partida, porque para ele não há mais história”. Cita alguns fatos históricos nas figuras de Mussolini e Franco, assim como da violência da guerra civil espanhola.

O tema principal é o enamoramento, o amor apaixonado que acontece sem que as pessoas decidam quem será a eleita. Surge também independente do outro ser aquilo que idealizamos, mas que durante o enamoramento, muitas vezes, não se percebe quem é realmente o outro (autoengano).
No conto de Balzac há um trecho, traduzido por Varela, no qual uma mãe pode matar um filho em detrimento do outro. Para María, não se costuma pensar que uma mãe distinguiria seus filhos, mesmo que pudessem ser de pais diferentes. O que pode acontecer, porém, é uma mãe educar um filho para sua perdição e morte, e não matá-lo sem mais nem menos.


Em vista das discussões a respeito da ficção, o que acontece em um romance não tem muita importância, diz Varela, pois as pessoas o esquecem depois de terminada a leitura. O que interessa neles “são as possibilidades e ideias que nos inoculam e trazem através de seus casos imaginários, nós os guardamos com mais nitidez do que os acontecimentos reais e os levamos mais a sério”. “A ficção tem a faculdade de nos mostrar o que não conhecemos e o que não acontece”, deixando aos leitores imaginar. 

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

DOIS IRMÃOS, Milton Hatoum

 A casa foi vendida com todas as lembranças/ todos os móveis todos os pesadelos/ todos os pecados cometidos ou em vias de cometer/ a casa foi vendida com o seu bater de portas/ com seu vento encanado sua vista do mundo/ seus imponderáveis. (Carlos Drummond de Andrade)

Amor e ódio, carência e excesso, verdade e hipocrisia, desigualdade social, ironia, preconceito, prostituição infantil e trabalho escravo são alguns dos temas abordados no livro Dois irmãos, de Milton Hatoum. Por meio da história de uma família de imigrantes libaneses, pode-se conhecer a cidade de Manaus, recheada de descrições bem detalhadas de seus espaços, sua história, seus mitos, seus rios e seus peixes, assim como viviam os vários povos na cidade. A parte boêmia, às margens do rio Negro, é bastante explorada, uma vez que nela conviveram muitos imigrantes.
Questionam-se as características da personalidade das pessoas sob o viés do amor, se a forma como esse amor é oferecido ao indivíduo condiz com o que ele espera de determinadas pessoas. Há que se pensar, ainda, sobre a influência do meio no caráter dos indivíduos. Ele influi, mas não é fator determinante. O exemplo disso é Nael, criado com muito amor pela mãe, mas lhe é omitido quem é seu pai. Nael toma como exemplo as melhores características de um do suposto pai, como estudar e conseguir melhorar sua vida. Quanto ao outro, ele observa os defeitos e não se espelha neles.
Paralelamente às duas personalidades diferentes dos irmãos, apresenta-se parte da história do país, começando com as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes, dificuldades diversas advindas da segunda guerra mundial, prosperidade para alguns no período da borracha e o período da ditadura militar.
Os imigrantes são separados de suas famílias e muitos vencem os obstáculos e se estabelecem na cidade, não como grandes empreendedores, mas como comerciantes que trabalham para sobreviver. A guerra promove uma série de adversidades, como falta de energia elétrica e alimentos. A extração da borracha traz muitas melhorias para a cidade, mas provoca muitos equívocos para uma população que acaba por se tornar escrava dos grandes coronéis. Vale ressaltar que os maiores prejudicados com essas mudanças foram os indígenas, impotentes frente ao progresso, submetidos a trabalhos escravos ou de menos valia. A ditadura era uma madrasta má, que determinava o presente e o futuro dos seus filhos, mais precisamente daqueles que lutavam por justiça.

 Amor e ódio

A história se desenrola em Manaus por cerca de 50 anos. Começa com a paixão à primeira vista de Halim por Zana, por volta de 1914, e termina depois de 1964. A restauração do passado representa um elemento fundamental na obra, narrada pelo personagem, Nael, filho de Domingas, uma jovem orfã índia, entregue pelo orfanato de freiras ao casal libanês, Zana e Halim, onde trabalha até a morte. A narrativa é extraída por meio de observações de Nael e das confidências de Halim. Muita coisa pode não ter sido dita, talvez por esquecimento, “mas a memória inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado”. Mesmo sendo narrado em primeira pessoa, é um romance polifônico, em vista das muitas vozes que alimentam a mente e o coração do narrador.
Halim é um eterno apaixonado por sua mulher, Zana. De certa forma seu amor era egoísta, ele a queria somente para ele, nem sonhava em ter filhos, para não ter que dividir o amor da mulher. Já Zana decide formar uma família. Nascem os primeiros filhos, gêmeos, Omar e Yakub. Pouco tempo após a chegada dos gêmeos, Zana dá à luz uma menina, Rânia. Sua criação não é bem explicada. Ela vive para a família, com melhor contato com o pai, uma grande cumplicidade com os irmãos.
O que Halim temia acontece, pois desde o nascimento dos filhos, Zana se dedica plenamente ao filho caçula, Omar, uma vez que ele necessitava de maiores cuidados, e vem a se tornar um homem irresponsável, provavelmente pelo excesso de zelo da mãe, que apoiava sua vida boêmia e conseguia fazer com que ele não adquirisse uma vida livre, em que pudesse construir sua própria família. Omar tem um temperamento aventureiro e não aceita perder para seu irmão, Yakub. Desde o nascimento este fica entregue a Domingas que, além dos cuidados maternos, aos poucos se ocupa de sua educação, suas distrações e passeios nos fins de semana.
Desde crianças surgem diferenças entre eles. Enquanto Omar é destemido, Yakub é mais reservado e sensível. A falta de demonstração de amor da mãe deixa Yakub magoado, e o ciúme de Halim por Omar afasta o filho de seu convívio diário.
Após Yakub ser agredido por Omar por causa de uma menina, deixando-lhe uma cicatriz no rosto, Halim aproveita esse episódio para enviar os filhos ao Líbano. Na verdade, ele queria muito resgatar a cumplicidade que existia entre ele e a mulher antes do nascimento dos filhos. No entanto, somente Yakub parte para o Líbano, pois Zana convence o marido que não seria prudente afastar Omar, alegando que ele poderia ficar doente. O arrependimento dessa atitude atormentará Halim na velhice. Em desabafo com Nael, diz que sua maior falha foi ter mandado seu filho sozinho para tão longe. Yakub permanece por cinco anos no Líbano, dos 13 aos 18 anos. Seu retorno coincide com a volta dos pracinhas da Itália, com o fim da segunda guerra.
A cicatriz marca não somente o rosto de Yakub, mas também a sua alma, era “uma dor e algum sentimento que ele não revelava e talvez não reconhecesse”. Um dos seus grandes rancores estava no fato de ter sido enviado, sozinho, ao sul do Líbano, onde sofrera. Percebia-se que ele guardava um segredo, nunca revelado. Havia também ódio. Por trás da máscara de sucesso como engenheiro em São Paulo, ele se preparava para dar o bote “minhoca que se quer serpente”. “Fui obrigado a me separar de todos, de tudo... não queria”. “Não morei no Líbano. Mandaram-me para uma aldeia no sul, e o tempo que passei lá, esqueci”. Pela mágoa alimentada por causa da separação forçada na adolescência, ele não aceita qualquer ajuda financeira dos pais e se vira sozinho na grande metrópole. Casa-se com Lívia, a menina da infância e parece ser feliz com suas conquistas.
O excesso de zelo de Zana por Omar transforma-o em um homem irresponsável, sempre buscando vantagens de amor e carinho por parte da mãe e de Domingas. Ele sente a falta do pai, mas este não concorda com seu estilo de vida. Já a falta de dedicação de Zana a Yakub, faz dele um homem perseverante, determinado a vencer na vida, porém longe da família que um dia o abandonou. Até o fim de seus dias, Zana revela diariamente o desejo de que seus filhos façam as pazes.
A narrativa construída por Nael, filho de Domingas com um dos gêmeos, e nunca reconhecido como membro da família, embora todos soubessem, parte de suas observações, de casos dispersos do passado, a fim de encontrar a si mesmo. É Halim que o toma como confidente, contando toda a sua vida e, a partir das condições nas quais vive sua mãe, ele vai preenchendo as lacunas deixadas pelo avô. O narrador faz alguns jogos com as palavras. Dizia que sua mãe queria ser livre, mas que eram “palavras mortas. Ninguém se liberta só com palavras”. Nael dizia que sonhar não bastava, e sua mãe o olhava “cheia de palavras guardadas, ansiosa por falar”.
Embora até o final do relato não se diga quem é o pai de Nael, sua mãe, já bastante doente, diz ao filho que gostava muito de Yakub, e declarou “com o Omar eu não queria... uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado... ele me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão”. Mesmo assim, ela ajudava Zana com muito carinho quando recebiam Omar bêbado.
Pode-se inferir que Domingas não poderia se relacionar com Yakub de outra forma que não fosse amor de mãe para filho, visto que fora ela que cuidara dele desde bebê, mesmo sendo ainda uma adolescente, estabelecendo-se assim um vínculo de carinho e respeito. Soma-se ao fato de Yakub ter ido para o Líbano aos 13 anos. Mas Nael percebia que sua mãe, muitas vezes, desejava Omar, mesmo depois da declaração feita acima. Yakub esperou sua mãe morrer para se vingar do irmão, por meio de um negócio de engenharia em que Omar saiu perdendo, e foi preso, posteriormente, sob a acusação de ser subversivo, condenado a sete meses de prisão.
Nael recebia cartas de Yakub, mas também havia se decepcionado com ele. Em certo momento ele pensa “sou e não sou filho de Yakub, e talvez ele tenha compartilhado comigo essa dúvida”. “O que Halim havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos”.
Antes da morte de Yakub, ele já sentira vontade de se distanciar dos dois irmãos, desejo mais forte que muitas lembranças. Tanto as atitudes de Omar contra tudo e todos, quanto os projetos de Yakub, levados a cabo com a sordidez de sua ambição calculada, causaram danos em todos da família. “Meus sentimentos de perda pertencem aos mortos (Halim e minha mãe)”. “Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos”.
Quando Omar se liberta, a casa não existe mais. Sua mãe já havia morrido e Rânia se mudara. Havia sobrado apenas o quartinho dos fundos, herança deixada por Yakub a Nael. Omar chega, aparentando mais velho do que realmente era, olha para Nael com um olhar à deriva e vai embora. Fecha-se um círculo, o fim de uma época e de uma família.







terça-feira, 15 de novembro de 2016

O jardim das Oliveiras, Nélida Piñon

A linguagem, meio de comunicação e interação, é fruto da liberdade. O poder das palavras, que possuem vida, mas podem, muitas vezes, ser a voz, arrancada à força, por um poder arbitrário.

O narrador-personagem redige o texto, em forma de diário, pedindo socorro a alguém de nome Zé, que é ele mesmo no passado, como se pode inferir quando se refere ao Zé como um homem “rijo como um cabo de metal”. Ele expõe a memória atormentada de um homem mergulhado no medo, que se sente culpado e covarde por não ter suportado as torturas, dando a seus algozes as palavras que eles queriam: onde estava Antônio, um militante de esquerda como ele mesmo.

O conto começa com a chegada de representantes do Governo para levar o narrador, nove anos depois, a dar um novo depoimento. Aqui se pode perceber uma intertextualidade com a Bíblia no que se refere à contagem das horas naquela época. Na terceira hora Jesus foi crucificado e morreu na sexta hora (meio-dia), desse momento até a nona hora houve trevas sobre a terra. O narrador vivia nas trevas se considerarmos seus tormentos.

Ele não faz perguntas e segue tentando adivinhar o que irá lhe acontecer. O medo e a lembrança dos momentos de tortura vividos no passado vão passando pela sua cabeça, assim como seu sofrimento e seu sentimento de culpa. Muitas reflexões sobre o amor, a amizade, o perdão, o poder, e principalmente, o poder das palavras, despertam em seu coração.

Durante o interrogatório, ele se assusta quando eles querem saber onde está Antônio, pois todos sabiam que ele havia sido torturado, morto e enterrado clandestinamente às margens de um rio, para que seu corpo nunca fosse encontrado. Mas as autoridades da época divulgaram que ele havia fugido para Paris. Nesse contexto, percebe-se que os inquisidores utilizam a ironia retórica (dupla possibilidade), tendo em vista que esse recurso se liga à dominação do outro, por meio do poder, de acordo com Duarte (2006). Segundo, ainda, a autora, “a ironia não é apenas uma questão de vocabulário, mas implica também atitudes ou pensamentos, em que o receptor possa perceber que as palavras não têm um sentido fixo e único, mas podem variar conforme o contexto”. A ironia mobiliza diferentes vozes no texto, as quais instauram a polifonia. Antônio poderia estar vivendo como clandestino em algum lugar do país, ou ele teria sido realmente morto, é uma reflexão dirigida ao leitor para que reflita, considerando-se a dúvida como ironia humoresque, uma vez que o conto reflete um momento político complexo e apresenta um narrador também complexo: marcas de indefinição e ambiguidade que caracterizam esse tipo de ironia.

O tempo apresenta uma perspectiva subjetiva, não linear, fragmentado, planos difusos, configurado pelas sensações e impressões do sujeito. Há rupturas na sucessão cronológica e a sensação de agonia e silêncio. Essa falta de delimitação do tempo é a consequência das muitas incertezas que atuam no leitor cujas inferências podem ser feitas pelas pistas deixadas pelo narrador.

O ambiente narrativo é tenso e caótico, com o objetivo de expressar a tensão do período da ditadura militar, juntamente com as sombras em que se envolve o narrador e os brasileiros contrários ao regime. Esse ambiente reflete, ainda, a noite de trevas e dor pela qual Jesus passou no Horto das Oliveiras.

O ambiente de sombras do regime militar apresenta uma referência ao Monte das Oliveiras, também conhecido como Jardim de Getsêmani, onde Jesus se encontrava angustiado, em vista da sua crucificação que aconteceria em breve. Segundo o evangelho de Marcos, “o suor de Jesus se tornou em grandes gotas de sangue, que corriam até o chão”. Esse episódio faz um paralelo com a chegada do narrador, pela segunda vez, aos porões dos órgãos da repressão, em que ele faz, em silêncio, uma súplica “[...] o medo grudado na pela ia-me asfixiando, os poros logo entupiam-se de ânsia e vontade de vomitar. Eu implorava aos intestinos, ao ventre e à alma que não me humilhassem uma vez mais”.

Além da referência ao Monte das Oliveiras, local de suplício e morte de Jesus, há uma alusão ao fato de Antônio ter ressuscitado, quando os inquisidores perguntam por ele, sabendo que estava morto. Há outras referências bíblicas como o sacrifício de cordeiros para o pagamento de pecados e a celebração da páscoa judaica, a libertação da escravidão na qual viviam os hebreus sob o poder do Faraó. Esses fatos históricos são vistos pelo narrador como algo presente em sua vida.

A palavra
A palavra tem muitos significados, entre eles também o bíblico. Há a parábola do semeador que semeia a palavra de Deus, usando grãos como metáfora, e que as palavras, assim como as sementes, germinam e frutificam naqueles que a acolhem e em solo fértil.
Ao entrar no jogo dos militares, o narrador diz que o jogo lhe custava a vida e a honra, mas que esse era o preço para ganhá-las de volta. Pensava ser corajoso o bastante para que eles não lhe arrancassem, mais uma vez, as palavras que o matariam por dentro e abririam a porta para esta mesma vida.
“Eu sei que a palavra é a vida”. “Eu sei que a vida prova-se com a palavra, mas quando nos é ela extraída à força e ainda assim a vida nos fica, não é a vida o único tesouro com que se recomeça a viver?”
“Apesar de tudo, trago comigo algumas perguntas. Nem todas palavras sufoquei.”
O narrador valoriza a palavra e é por meio dela que tenta se justificar, assim como quer justificar seus medos, suas culpas e seu modo de vida aos seus leitores, interlocutores na construção textual.
“Do mesmo modo que todo texto de minha lavra pertence ao vizinho que também escreve em meu nome a história da minha miséria”.

Outras intertextualidades
Antônio das Mortes é um personagem criado para o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964, do diretor baiano Glauber Rocha. Ele se autodenomina matador de cangaceiros. No filme ele persegue e mata Corisco, um dos últimos comparsas de Lampião. O narrador de O jardim das Oliveiras se assusta quando lhe perguntam por Antônio e, por um breve momento, lembra-se do Antônio do filme de Glauber Rocha, uma vez que foi feito novo filme, em 1969, com um personagem com o mesmo nome (ressuscita-se o personagem). Glauber Rocha foi exilado no período da ditadura, e insere no seu trabalho os mandos e desmandos de um coronel, comparando-os aos dos militares da ditadura que agiam da mesma forma. Com o AI-5, muitas pessoas “sumiam” por negar a ordem vigente.
Machado de Assis em Memórias Póstumas: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. “Não quero descendência, mas um esperma seco e apático”, diz o narrador.
O poema “José”, de Drummond, nos leva a reforçar que Zé é o próprio narrador anônimo, pois o poema retrata, em muitos versos, situações semelhantes vividas pelo narrador.

O poema narra a solidão de um homem angustiado pela vida. A alegria e a felicidade já existiram, mas acabou e agora só existe a escuridão, o frio, o abandono. As repetições reforçam a situação do homem que não tem mais um ambiente para viver. José é um heterônimo do autor. É  capaz de amar, de ser irônico, mas por ironia é desconhecido, vive no anonimato. Seu anonimato e solidão não são opcionais. Não foi José quem acabou com a festa, apagou a luz, ele não escolheu o anonimato, foi o povo que sumiu. Há um vazio, tudo é rotina e monotonia. Ele é marcado por sentimentos opostos, conflitos que não conduzem à solução.  Tudo lhe parece inútil e desprovido de significado.  Sente-se encurralado, não pode nem morrer. José é  duro na queda. Feito de ferro. Acuado, resta-lhe a solidão e o abandono.

Outras considerações:

De acordo com a psicanalista, jornalista, escritora e crítica literária Maria Rita Kehl (2010, p. 130), um corpo torturado é um corpo roubado ao seu próprio controle; corpo dissociado de um sujeito, transformado em objeto nas mãos poderosas do outro – seja o Estado ou o criminoso comum. Ela explica que, sob tortura, a fala que representa o sujeito deixa de lhe pertencer, uma vez que o torturador pode arrancar de sua vítima a palavra que ele quer ouvir, e não a que o sujeito teria a dizer. Por isso o protagonista afirma: “Eu era o que eles me designassem. Eu era as palavras arrancadas à força, era a covardia que eles souberam despertar em mim, e antes me fora desconhecida”.

É importante levar em conta que muitos textos literários procuram retratar a realidade. E, mesmo quando não o fazem de forma explícita, traços dessa realidade ainda podem ser percebidos, conforme explica o professor alemão Wolfgang Iser (1996, p. 14): “[...] há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional”. E é nesse sentido, ao fazer apelo às emoções e à empatia, que a literatura percorre regiões da experiência que os discursos filosófico, sociológico e psicológico muitas vezes negligenciam. Como defende o professor e pesquisador francês Antoine Compagnon (2009, p. 71), “a literatura não é a única, mas é mais atenta que a imagem e mais eficaz que o documento”.


Observação: A análise desse conto foi feita em parceira com Rafaela Angeli, Moacir Júnior e André Orandi, em abril/2016. Entretanto, fiz algumas alterações no trabalho original, privilegiando a palavra.


REFERÊNCIAS

DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e humor na Literatura. Belo Horizonte: Editora PUC Minas; São Paulo: Alameda, 2006.

COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Tradução de Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: UFMG, 2009
ISER, Wolfgang. Atos de fingir. In O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Tradução de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: UERJ, 1996.

KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. In TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.

Joyce Glenda Barros Amorim - UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários