A linguagem, meio de comunicação e
interação, é fruto da liberdade. O poder das palavras, que possuem vida, mas
podem, muitas vezes, ser a voz, arrancada à força, por um poder arbitrário.
O
narrador-personagem redige o texto, em forma de diário, pedindo socorro a
alguém de nome Zé, que é ele mesmo no passado, como se pode inferir quando se
refere ao Zé como um homem “rijo como um cabo de metal”. Ele expõe a memória
atormentada de um homem mergulhado no medo, que se sente culpado e covarde por
não ter suportado as torturas, dando a seus algozes as palavras que eles
queriam: onde estava Antônio, um militante de esquerda como ele mesmo.
O
conto começa com a chegada de representantes do Governo para levar o narrador,
nove anos depois, a dar um novo depoimento. Aqui se pode perceber uma
intertextualidade com a Bíblia no que se refere à contagem das horas naquela
época. Na terceira hora Jesus foi crucificado e morreu na sexta hora (meio-dia),
desse momento até a nona hora houve trevas sobre a terra. O narrador vivia nas
trevas se considerarmos seus tormentos.
Ele
não faz perguntas e segue tentando adivinhar o que irá lhe acontecer. O medo e
a lembrança dos momentos de tortura vividos no passado vão passando pela sua cabeça,
assim como seu sofrimento e seu sentimento de culpa. Muitas reflexões sobre o
amor, a amizade, o perdão, o poder, e principalmente, o poder das palavras,
despertam em seu coração.
Durante o interrogatório, ele se assusta
quando eles querem saber onde está Antônio, pois todos sabiam que ele havia
sido torturado, morto e enterrado clandestinamente às margens de um rio, para
que seu corpo nunca fosse encontrado. Mas as autoridades da época divulgaram
que ele havia fugido para Paris. Nesse contexto, percebe-se que os inquisidores
utilizam a ironia retórica (dupla possibilidade), tendo em vista que esse
recurso se liga à dominação do outro, por meio do poder, de acordo com Duarte
(2006). Segundo, ainda, a autora, “a ironia não é apenas uma questão de
vocabulário, mas implica também atitudes ou pensamentos, em que o receptor
possa perceber que as palavras não têm um sentido fixo e único, mas podem
variar conforme o contexto”. A ironia mobiliza diferentes vozes no texto, as
quais instauram a polifonia. Antônio poderia estar vivendo como clandestino em
algum lugar do país, ou ele teria sido realmente morto, é uma reflexão dirigida
ao leitor para que reflita, considerando-se a dúvida como ironia humoresque, uma vez que o conto reflete
um momento político complexo e apresenta um narrador também complexo: marcas de
indefinição e ambiguidade que caracterizam esse tipo de ironia.
O
tempo apresenta uma perspectiva subjetiva, não linear, fragmentado, planos
difusos, configurado pelas sensações e impressões do sujeito. Há rupturas na
sucessão cronológica e a sensação de agonia e silêncio. Essa falta de
delimitação do tempo é a consequência das muitas incertezas que atuam no leitor
cujas inferências podem ser feitas pelas pistas deixadas pelo narrador.
O
ambiente narrativo é tenso e caótico, com o objetivo de expressar a tensão do
período da ditadura militar, juntamente com as sombras em que se envolve o
narrador e os brasileiros contrários ao regime. Esse ambiente reflete, ainda, a
noite de trevas e dor pela qual Jesus passou no Horto das Oliveiras.
O
ambiente de sombras do regime militar apresenta uma referência ao Monte das
Oliveiras, também conhecido como Jardim de Getsêmani, onde Jesus se encontrava
angustiado, em vista da sua crucificação que aconteceria em breve. Segundo o
evangelho de Marcos, “o suor de Jesus se
tornou em grandes gotas de sangue, que corriam até o chão”. Esse episódio
faz um paralelo com a chegada do narrador, pela segunda vez, aos porões dos
órgãos da repressão, em que ele faz, em silêncio, uma súplica “[...] o medo grudado na pela ia-me
asfixiando, os poros logo entupiam-se de ânsia e vontade de vomitar. Eu
implorava aos intestinos, ao ventre e à alma que não me humilhassem uma vez
mais”.
Além
da referência ao Monte das Oliveiras, local de suplício e morte de Jesus, há
uma alusão ao fato de Antônio ter ressuscitado, quando os inquisidores
perguntam por ele, sabendo que estava morto. Há outras referências bíblicas
como o sacrifício de cordeiros para o pagamento de pecados e a celebração da
páscoa judaica, a libertação da escravidão na qual viviam os hebreus sob o
poder do Faraó. Esses fatos históricos são vistos pelo narrador como algo
presente em sua vida.
A
palavra
A
palavra tem muitos significados, entre eles também o bíblico. Há a parábola do
semeador que semeia a palavra de Deus, usando grãos como metáfora, e que as
palavras, assim como as sementes, germinam e frutificam naqueles que a acolhem
e em solo fértil.
Ao
entrar no jogo dos militares, o narrador diz que o jogo lhe custava a vida e a
honra, mas que esse era o preço para ganhá-las de volta. Pensava ser corajoso o
bastante para que eles não lhe arrancassem, mais uma vez, as palavras que o
matariam por dentro e abririam a porta para esta mesma vida.
“Eu
sei que a palavra é a vida”. “Eu sei que a vida prova-se com a palavra, mas
quando nos é ela extraída à força e ainda assim a vida nos fica, não é a vida o
único tesouro com que se recomeça a viver?”
“Apesar
de tudo, trago comigo algumas perguntas. Nem todas palavras sufoquei.”
O
narrador valoriza a palavra e é por meio dela que tenta se justificar, assim
como quer justificar seus medos, suas culpas e seu modo de vida aos seus
leitores, interlocutores na construção textual.
“Do
mesmo modo que todo texto de minha lavra pertence ao vizinho que também escreve
em meu nome a história da minha miséria”.
Outras
intertextualidades
Antônio das Mortes
é um personagem criado para o filme Deus
e o Diabo na Terra do Sol, de 1964, do diretor baiano Glauber Rocha. Ele se
autodenomina matador de cangaceiros. No filme ele persegue e mata Corisco, um
dos últimos comparsas de Lampião. O narrador de O jardim das Oliveiras se assusta quando lhe perguntam por Antônio
e, por um breve momento, lembra-se do Antônio do filme de Glauber Rocha, uma
vez que foi feito novo filme, em 1969, com um personagem com o mesmo nome
(ressuscita-se o personagem). Glauber Rocha foi exilado no período da ditadura,
e insere no seu trabalho os mandos e desmandos de um coronel, comparando-os aos
dos militares da ditadura que agiam da mesma forma. Com o AI-5, muitas pessoas
“sumiam” por negar a ordem vigente.
Machado de Assis em Memórias
Póstumas: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura
o legado de nossa miséria”. “Não quero descendência, mas um esperma seco e
apático”, diz o narrador.
O poema
“José”, de Drummond, nos leva a
reforçar que Zé é o próprio narrador anônimo, pois o poema retrata, em muitos
versos, situações semelhantes vividas pelo narrador.
O
poema narra a solidão de um homem angustiado pela vida. A alegria e a
felicidade já existiram, mas acabou e agora só existe a escuridão, o frio, o
abandono. As repetições reforçam a situação do homem que não tem mais um
ambiente para viver. José é um heterônimo do autor. É capaz de amar, de
ser irônico, mas por ironia é desconhecido, vive no anonimato. Seu anonimato e
solidão não são opcionais. Não foi José quem acabou com a festa, apagou a luz,
ele não escolheu o anonimato, foi o povo que sumiu. Há um vazio, tudo é rotina
e monotonia. Ele é marcado por sentimentos opostos, conflitos que não conduzem
à solução. Tudo lhe parece inútil e
desprovido de significado. Sente-se encurralado, não pode nem morrer.
José é duro na queda. Feito de ferro. Acuado, resta-lhe a solidão e o
abandono.
Outras
considerações:
De acordo com a psicanalista,
jornalista, escritora e crítica literária Maria Rita Kehl (2010, p. 130), um
corpo torturado é um corpo roubado ao seu próprio controle; corpo dissociado de
um sujeito, transformado em objeto nas mãos poderosas do outro – seja o Estado
ou o criminoso comum. Ela explica que, sob tortura, a fala que representa o
sujeito deixa de lhe pertencer, uma vez que o torturador pode arrancar de sua
vítima a palavra que ele quer ouvir, e não a que o sujeito teria a
dizer. Por isso o protagonista afirma: “Eu era o que eles me designassem. Eu
era as palavras arrancadas à força, era a covardia que eles souberam despertar
em mim, e antes me fora desconhecida”.
É importante levar em conta que muitos
textos literários procuram retratar a realidade. E, mesmo quando não o fazem de
forma explícita, traços dessa realidade ainda podem ser percebidos, conforme
explica o professor alemão Wolfgang Iser (1996, p. 14): “[...] há no texto
ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade
social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional”. E é nesse
sentido, ao fazer apelo às emoções e à empatia, que a literatura percorre
regiões da experiência que os discursos filosófico, sociológico e psicológico
muitas vezes negligenciam. Como defende o professor e pesquisador francês
Antoine Compagnon (2009, p. 71), “a literatura não é a única, mas é mais atenta
que a imagem e mais eficaz que o documento”.
Observação:
A análise desse conto foi feita em parceira com Rafaela Angeli, Moacir Júnior e
André Orandi, em abril/2016. Entretanto, fiz algumas alterações no trabalho original, privilegiando a palavra.
REFERÊNCIAS
DUARTE,
Lélia Parreira. Ironia e humor na
Literatura. Belo
Horizonte: Editora PUC Minas; São Paulo: Alameda, 2006.
COMPAGNON,
Antoine. Literatura para quê? Tradução de Laura Taddei Brandini. Belo
Horizonte: UFMG, 2009
ISER,
Wolfgang. Atos de fingir. In O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia
literária. Tradução de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: UERJ, 1996.
KEHL,
Maria Rita. Tortura e sintoma social.
In TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir
(Orgs.). O que resta da ditadura:
a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
Joyce
Glenda Barros Amorim - UNIVERSIDADE
FEDERAL DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários