terça-feira, 13 de dezembro de 2016

DOIS IRMÃOS, Milton Hatoum

 A casa foi vendida com todas as lembranças/ todos os móveis todos os pesadelos/ todos os pecados cometidos ou em vias de cometer/ a casa foi vendida com o seu bater de portas/ com seu vento encanado sua vista do mundo/ seus imponderáveis. (Carlos Drummond de Andrade)

Amor e ódio, carência e excesso, verdade e hipocrisia, desigualdade social, ironia, preconceito, prostituição infantil e trabalho escravo são alguns dos temas abordados no livro Dois irmãos, de Milton Hatoum. Por meio da história de uma família de imigrantes libaneses, pode-se conhecer a cidade de Manaus, recheada de descrições bem detalhadas de seus espaços, sua história, seus mitos, seus rios e seus peixes, assim como viviam os vários povos na cidade. A parte boêmia, às margens do rio Negro, é bastante explorada, uma vez que nela conviveram muitos imigrantes.
Questionam-se as características da personalidade das pessoas sob o viés do amor, se a forma como esse amor é oferecido ao indivíduo condiz com o que ele espera de determinadas pessoas. Há que se pensar, ainda, sobre a influência do meio no caráter dos indivíduos. Ele influi, mas não é fator determinante. O exemplo disso é Nael, criado com muito amor pela mãe, mas lhe é omitido quem é seu pai. Nael toma como exemplo as melhores características de um do suposto pai, como estudar e conseguir melhorar sua vida. Quanto ao outro, ele observa os defeitos e não se espelha neles.
Paralelamente às duas personalidades diferentes dos irmãos, apresenta-se parte da história do país, começando com as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes, dificuldades diversas advindas da segunda guerra mundial, prosperidade para alguns no período da borracha e o período da ditadura militar.
Os imigrantes são separados de suas famílias e muitos vencem os obstáculos e se estabelecem na cidade, não como grandes empreendedores, mas como comerciantes que trabalham para sobreviver. A guerra promove uma série de adversidades, como falta de energia elétrica e alimentos. A extração da borracha traz muitas melhorias para a cidade, mas provoca muitos equívocos para uma população que acaba por se tornar escrava dos grandes coronéis. Vale ressaltar que os maiores prejudicados com essas mudanças foram os indígenas, impotentes frente ao progresso, submetidos a trabalhos escravos ou de menos valia. A ditadura era uma madrasta má, que determinava o presente e o futuro dos seus filhos, mais precisamente daqueles que lutavam por justiça.

 Amor e ódio

A história se desenrola em Manaus por cerca de 50 anos. Começa com a paixão à primeira vista de Halim por Zana, por volta de 1914, e termina depois de 1964. A restauração do passado representa um elemento fundamental na obra, narrada pelo personagem, Nael, filho de Domingas, uma jovem orfã índia, entregue pelo orfanato de freiras ao casal libanês, Zana e Halim, onde trabalha até a morte. A narrativa é extraída por meio de observações de Nael e das confidências de Halim. Muita coisa pode não ter sido dita, talvez por esquecimento, “mas a memória inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado”. Mesmo sendo narrado em primeira pessoa, é um romance polifônico, em vista das muitas vozes que alimentam a mente e o coração do narrador.
Halim é um eterno apaixonado por sua mulher, Zana. De certa forma seu amor era egoísta, ele a queria somente para ele, nem sonhava em ter filhos, para não ter que dividir o amor da mulher. Já Zana decide formar uma família. Nascem os primeiros filhos, gêmeos, Omar e Yakub. Pouco tempo após a chegada dos gêmeos, Zana dá à luz uma menina, Rânia. Sua criação não é bem explicada. Ela vive para a família, com melhor contato com o pai, uma grande cumplicidade com os irmãos.
O que Halim temia acontece, pois desde o nascimento dos filhos, Zana se dedica plenamente ao filho caçula, Omar, uma vez que ele necessitava de maiores cuidados, e vem a se tornar um homem irresponsável, provavelmente pelo excesso de zelo da mãe, que apoiava sua vida boêmia e conseguia fazer com que ele não adquirisse uma vida livre, em que pudesse construir sua própria família. Omar tem um temperamento aventureiro e não aceita perder para seu irmão, Yakub. Desde o nascimento este fica entregue a Domingas que, além dos cuidados maternos, aos poucos se ocupa de sua educação, suas distrações e passeios nos fins de semana.
Desde crianças surgem diferenças entre eles. Enquanto Omar é destemido, Yakub é mais reservado e sensível. A falta de demonstração de amor da mãe deixa Yakub magoado, e o ciúme de Halim por Omar afasta o filho de seu convívio diário.
Após Yakub ser agredido por Omar por causa de uma menina, deixando-lhe uma cicatriz no rosto, Halim aproveita esse episódio para enviar os filhos ao Líbano. Na verdade, ele queria muito resgatar a cumplicidade que existia entre ele e a mulher antes do nascimento dos filhos. No entanto, somente Yakub parte para o Líbano, pois Zana convence o marido que não seria prudente afastar Omar, alegando que ele poderia ficar doente. O arrependimento dessa atitude atormentará Halim na velhice. Em desabafo com Nael, diz que sua maior falha foi ter mandado seu filho sozinho para tão longe. Yakub permanece por cinco anos no Líbano, dos 13 aos 18 anos. Seu retorno coincide com a volta dos pracinhas da Itália, com o fim da segunda guerra.
A cicatriz marca não somente o rosto de Yakub, mas também a sua alma, era “uma dor e algum sentimento que ele não revelava e talvez não reconhecesse”. Um dos seus grandes rancores estava no fato de ter sido enviado, sozinho, ao sul do Líbano, onde sofrera. Percebia-se que ele guardava um segredo, nunca revelado. Havia também ódio. Por trás da máscara de sucesso como engenheiro em São Paulo, ele se preparava para dar o bote “minhoca que se quer serpente”. “Fui obrigado a me separar de todos, de tudo... não queria”. “Não morei no Líbano. Mandaram-me para uma aldeia no sul, e o tempo que passei lá, esqueci”. Pela mágoa alimentada por causa da separação forçada na adolescência, ele não aceita qualquer ajuda financeira dos pais e se vira sozinho na grande metrópole. Casa-se com Lívia, a menina da infância e parece ser feliz com suas conquistas.
O excesso de zelo de Zana por Omar transforma-o em um homem irresponsável, sempre buscando vantagens de amor e carinho por parte da mãe e de Domingas. Ele sente a falta do pai, mas este não concorda com seu estilo de vida. Já a falta de dedicação de Zana a Yakub, faz dele um homem perseverante, determinado a vencer na vida, porém longe da família que um dia o abandonou. Até o fim de seus dias, Zana revela diariamente o desejo de que seus filhos façam as pazes.
A narrativa construída por Nael, filho de Domingas com um dos gêmeos, e nunca reconhecido como membro da família, embora todos soubessem, parte de suas observações, de casos dispersos do passado, a fim de encontrar a si mesmo. É Halim que o toma como confidente, contando toda a sua vida e, a partir das condições nas quais vive sua mãe, ele vai preenchendo as lacunas deixadas pelo avô. O narrador faz alguns jogos com as palavras. Dizia que sua mãe queria ser livre, mas que eram “palavras mortas. Ninguém se liberta só com palavras”. Nael dizia que sonhar não bastava, e sua mãe o olhava “cheia de palavras guardadas, ansiosa por falar”.
Embora até o final do relato não se diga quem é o pai de Nael, sua mãe, já bastante doente, diz ao filho que gostava muito de Yakub, e declarou “com o Omar eu não queria... uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado... ele me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão”. Mesmo assim, ela ajudava Zana com muito carinho quando recebiam Omar bêbado.
Pode-se inferir que Domingas não poderia se relacionar com Yakub de outra forma que não fosse amor de mãe para filho, visto que fora ela que cuidara dele desde bebê, mesmo sendo ainda uma adolescente, estabelecendo-se assim um vínculo de carinho e respeito. Soma-se ao fato de Yakub ter ido para o Líbano aos 13 anos. Mas Nael percebia que sua mãe, muitas vezes, desejava Omar, mesmo depois da declaração feita acima. Yakub esperou sua mãe morrer para se vingar do irmão, por meio de um negócio de engenharia em que Omar saiu perdendo, e foi preso, posteriormente, sob a acusação de ser subversivo, condenado a sete meses de prisão.
Nael recebia cartas de Yakub, mas também havia se decepcionado com ele. Em certo momento ele pensa “sou e não sou filho de Yakub, e talvez ele tenha compartilhado comigo essa dúvida”. “O que Halim havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos”.
Antes da morte de Yakub, ele já sentira vontade de se distanciar dos dois irmãos, desejo mais forte que muitas lembranças. Tanto as atitudes de Omar contra tudo e todos, quanto os projetos de Yakub, levados a cabo com a sordidez de sua ambição calculada, causaram danos em todos da família. “Meus sentimentos de perda pertencem aos mortos (Halim e minha mãe)”. “Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos”.
Quando Omar se liberta, a casa não existe mais. Sua mãe já havia morrido e Rânia se mudara. Havia sobrado apenas o quartinho dos fundos, herança deixada por Yakub a Nael. Omar chega, aparentando mais velho do que realmente era, olha para Nael com um olhar à deriva e vai embora. Fecha-se um círculo, o fim de uma época e de uma família.