quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Barba ensopada de sangue


Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera, narra a história de uma família que atravessa três gerações de homens. O avô, exímio nadador, é tido como morto em uma pequena cidade de Santa Catarina, Garopaba. Seu filho se mata anos depois. Seu neto se muda para a mesma cidade em busca de uma nova vida e da história do desaparecimento do avô.
O ambiente da narrativa é sempre tenso e misterioso. Existe na cidade um mito em relação a Gaudério, avô do protagonista. O rapaz tem um problema particular, ele não consegue memorizar rostos, inclusive o seu. Para reconhecer as pessoas, cria alguns recursos: gravar a voz, algum detalhe do cabelo, altura, o modo como a pessoa se movimenta, enfim, detalhes que passariam despercebidos pela maioria das pessoas.

A história de Gaudério, assim como a do professor, como é identificado o protagonista, também pode ser considerada mítica, pois foi passada de boca em boca, fazendo parte da história de Garopaba e do imaginário de seus cidadãos. O mito tem o seu lado fantástico em diversas passagens, dentre elas uma lenda a respeito de um tesouro. Há também uma curiosidade em relação a sua cachorrinha, Beta, que fica mancando depois de um acidente e aprende a gostar de nadar no mar, junto ao seu dono.

O protagonista também é um homem solitário. É generoso e gosta de cultivar amizades, mas privilegia seus momentos de solidão com caminhadas, natação e a convivência com a cadela Beta, deixada por seu pai.

A narrativa é feita em terceira pessoa. No entanto, é como se o protagonista fosse o narrador, uma vez que ele não é onisciente. O que sabemos dos outros personagens são diálogos ou situações contadas pelo narrador, sempre na presença do protagonista, que nos fornece as pistas dos seus processos de reconhecimento, assim como suas reflexões acerca de uma série de fatos que muito marcaram sua vida. O seu eu que não se reconhece exteriormente pode também lhe causar algum constrangimento.

O destino e as intuições estão presentes na vida do professor. A mãe de Dália, sua namorada, tenta alertá-lo a respeito de fatos que aconteceriam no seu futuro e que surgiam nos sonhos dela. O protagonista também tem muitos sonhos, momentos em que eles parecem ser bastante reais e costuma o assustar. Certa vez prevê que sua ex-mulher, Viviane, que o havia traído com o irmão, surgiria anos depois na sua frente para avisá-lo que estava grávida do irmão. Prevê também que morreria afogado no mar.

Todos esses homens passaram por momentos de solidão por motivos diferentes. O pai do protagonista se mata e, antes de cometer o suicídio, revela ao filho, em último encontro, que já está determinado a sair da vida, cansado e doente.  Ele se vê impotente para levar uma vida cheia de restrições e sem prazeres.

Nesse encontro, o pai pergunta ao filho se havia lido o conto O sul, de Borges. Como o protagonista não tem o hábito de ler, o pai não fala mais no assunto. Esse conto se refere a uma visita ao passado, a um avô morto em uma batalha. Trata ainda da morte, das circunstâncias em que ela acontece, refletindo-se qual seria a melhor. O conto poderia explicar ao filho, de forma romanceada, os motivos que levaram o pai a lhe contar sobre a morte do avô e seu desejo de se matar.

De acordo com a obra Os segredos da ficção, de Raimundo Carrero (2005), “o autor do romance moderno sai de cena para conceder prioridade ao personagem. As luzes estão sobre ele, que é construído pela cena e por outros personagens, até alcançar o leitor, estabelecendo-se aí a pulsação narrativa, que é resultado das pulsações do personagem, da cena e do leitor. Nesse processo, ocorre a interação entre narrativa e leitor, que entra na pulsação do texto, devolvendo ao texto a sua paixão de leitor”.

O clima de solidão e da história da saga de uma família, me fez lembrar a obra Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marquez, que li há muitos anos atrás e me deixava uma sensação de opressão e até de desorientação em vista dos nomes repetidos de geração em geração. Já Galera deixa sensação parecida no protagonista que, muitas vezes, se perde no reconhecimento de pessoas com as quais mantém boas relações e nas reflexões sobre vida, amor, felicidade e morte. Há nas duas obras referências a muitos mitos e lendas. Há muitas diferenças, é claro, principalmente por conta do conteúdo político e histórico da Macondo de Garcia Marquez.


Somente depois de terminado o livro, percebemos que a sua introdução foi feita pelo sobrinho do protagonista, filho do seu irmão e de Viviane. Nota-se que o mito de Gaudério é substituído pelo mito do protagonista. O caráter cíclico do mito é evidenciado quando o sobrinho revela ter o mesmo interesse que o protagonista em descobrir a verdade sobre a história contada: os mitos se repetem.

Em uma entrevista ao JC, Daniel Galera diz:
“Desde o princípio do trabalho, eu queria que o romance explorasse de maneira implícita a questão filosófica da responsabilidade humana em uma visão de mundo determinista, segundo a qual tudo que acontece é apenas resultado inevitável do que aconteceu logo antes. É um assunto que me interessa. Mas eu não queria tratar disso de maneira demasiadamente explícita. No final, a discussão vem à tona no diálogo do protagonista com a ex-namorada e para mim tudo está resumido nessa fala que foi destacada: Ninguém escolhe nada e mesmo assim a responsabilidade é nossa. Essa aparente contradição me parece conter uma verdade preciosa. O protagonista do romance é um veículo dessa perspectiva dentro da história do livro, mas assim como ele, eu não possuo uma resposta satisfatória para o dilema. Eu gosto da pergunta.

Minha intenção era que a história de desenrolasse de um ponto de vista colado à visão do protagonista, mas em terceira pessoa. Acho que esse recurso dá uma sensação interessante de ação acontecendo em tempo real. Foi uma escolha que me pareceu ter sintonia com a história, com o teor dos temas tratados, com a incapacidade do personagem de lembrar rostos humanos e com o tipo de impressão estética que eu pretendia causar. Por isso a narrativa em terceira pessoa no tempo presente, e também o uso das notas de rodapé para acolher os poucos flashbacks, mensagens e pontos de vistas externos ao protagonista. E do meu ponto de vista, a prosa nem é tão direta assim. Tem umas firulas no livro”.

Perguntado se havia referência autobiográfica na obra, Daniel diz que a mistura de vida do autor e temática dos romances não é uma obsessão da literatura contemporânea e sim uma obsessão do leitor contemporâneo (e da crítica, e da imprensa cultural, etc.). Na literatura isso sempre foi comum, é quase inevitável. Qualquer artista parte da experiência subjetiva e da sua visão de mundo particular para criar. Não há como ser diferente. Isso não é a mesma coisa que autobiografia ou autoficção, narrativas em que o vínculo da história com a realidade é assumido e enfatizado. Não é o caso do Barba ensopada de sangue. Meu romance tem vários pontos em comum com detalhes da minha experiência pessoal, desde a própria ambientação em Garopaba, onde vivi por um tempo, até a paixão do protagonista pela natação, mas o enredo e os personagens são em maior parte fictícios.

Sobre a possibilidade de que a releitura do primeiro capítulo dê ao romance uma nova perspectiva, Daniel responde: o que me interessava era investigar como uma vida prosaica e anônima pode se converter em mito ou lenda numa pequena comunidade. A isso, soma-se o tema da família e suas relações com a identidade pessoal. O avô do personagem se tornou um mito local e isso começa a acontecer também com o neto na medida em que ele procura investigar a verdadeira história do avô. A ideia era justamente essa, que a breve introdução do livro pudesse ser compreendida de outra maneira após o fim da leitura, comentando essa espécie de transmissão do mito em uma narrativa que não tem nada de mitológico no seu decorrer, até pelo contrário.