Barba
Ensopada de Sangue, de Daniel
Galera, narra a história de uma família que atravessa
três gerações de homens. O avô, exímio nadador, é tido como morto em uma
pequena cidade de Santa Catarina, Garopaba. Seu filho se mata anos depois. Seu
neto se muda para a mesma cidade em busca de uma nova vida e da história do desaparecimento
do avô.
O ambiente da
narrativa é sempre tenso e misterioso. Existe na cidade um mito em relação a
Gaudério, avô do protagonista. O rapaz tem um problema particular, ele não
consegue memorizar rostos, inclusive o seu. Para reconhecer as
pessoas, cria alguns recursos: gravar a voz, algum detalhe do cabelo, altura, o
modo como a pessoa se movimenta, enfim, detalhes que passariam despercebidos
pela maioria das pessoas.
A história de
Gaudério, assim como a do professor, como é identificado o protagonista, também
pode ser considerada mítica, pois foi passada de boca em boca, fazendo parte da
história de Garopaba e do imaginário de seus cidadãos. O mito tem o seu lado
fantástico em diversas passagens, dentre elas uma lenda a respeito de um
tesouro. Há também uma curiosidade em relação a sua cachorrinha, Beta, que fica
mancando depois de um acidente e aprende a gostar de nadar no mar, junto ao seu
dono.
O
protagonista também é um homem solitário. É generoso e gosta de cultivar
amizades, mas privilegia seus momentos de solidão com caminhadas, natação e a
convivência com a cadela Beta, deixada por seu pai.
A
narrativa é feita em terceira pessoa. No entanto, é como se o protagonista
fosse o narrador, uma vez que ele não é onisciente. O que sabemos dos outros
personagens são diálogos ou situações contadas pelo narrador, sempre na
presença do protagonista, que nos fornece as pistas dos seus processos de
reconhecimento, assim como suas reflexões acerca de uma série de fatos que
muito marcaram sua vida. O seu eu que
não se reconhece exteriormente pode também lhe causar algum constrangimento.
O destino e as
intuições estão presentes na vida do professor. A mãe de Dália, sua namorada,
tenta alertá-lo a respeito de fatos que aconteceriam no seu futuro e que
surgiam nos sonhos dela. O protagonista também tem muitos sonhos, momentos em
que eles parecem ser bastante reais e costuma o assustar. Certa vez prevê que
sua ex-mulher, Viviane, que o havia traído com o irmão, surgiria anos depois na
sua frente para avisá-lo que estava grávida do irmão. Prevê também que morreria
afogado no mar.
Todos
esses homens passaram por momentos de solidão por motivos diferentes. O pai do
protagonista se mata e, antes de cometer o suicídio, revela ao filho, em último
encontro, que já está determinado a sair da vida, cansado e doente. Ele se vê impotente para levar uma vida cheia
de restrições e sem prazeres.
Nesse
encontro, o pai pergunta ao filho se havia lido o conto O sul, de Borges. Como o protagonista não tem o hábito de ler, o
pai não fala mais no assunto. Esse conto se refere a uma visita ao passado, a
um avô morto em uma batalha. Trata ainda da morte, das circunstâncias em que
ela acontece, refletindo-se qual seria a melhor. O conto poderia explicar ao
filho, de forma romanceada, os motivos que levaram o pai a lhe contar sobre a
morte do avô e seu desejo de se matar.
De
acordo com a obra Os segredos da ficção,
de Raimundo Carrero (2005), “o autor do romance moderno sai de cena para
conceder prioridade ao personagem. As luzes estão sobre ele, que é construído
pela cena e por outros personagens, até alcançar o leitor, estabelecendo-se aí
a pulsação narrativa, que é resultado das pulsações do personagem, da cena e do
leitor. Nesse processo, ocorre a interação entre narrativa e leitor, que entra
na pulsação do texto, devolvendo ao texto a sua paixão de leitor”.
O
clima de solidão e da história da saga de uma família, me fez lembrar a obra Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia
Marquez, que li há muitos anos atrás e me deixava uma sensação de opressão e
até de desorientação em vista dos nomes repetidos de geração em geração. Já
Galera deixa sensação parecida no protagonista que, muitas vezes, se perde no
reconhecimento de pessoas com as quais mantém boas relações e nas reflexões
sobre vida, amor, felicidade e morte. Há nas duas obras referências a muitos
mitos e lendas. Há muitas diferenças, é claro, principalmente por conta do
conteúdo político e histórico da Macondo de Garcia Marquez.
Somente
depois de terminado o livro, percebemos que a sua introdução foi feita pelo
sobrinho do protagonista, filho do seu irmão e de Viviane. Nota-se que o mito
de Gaudério é substituído pelo mito do protagonista. O caráter cíclico do mito
é evidenciado quando o sobrinho revela ter o mesmo interesse que o protagonista
em descobrir a verdade sobre a história contada: os mitos se repetem.
Em
uma entrevista ao JC, Daniel Galera diz:
“Desde
o princípio do trabalho, eu queria que o romance explorasse de maneira
implícita a questão filosófica da responsabilidade humana em uma visão de mundo
determinista, segundo a qual tudo que acontece é apenas resultado inevitável do
que aconteceu logo antes. É um assunto que me interessa. Mas eu não queria
tratar disso de maneira demasiadamente explícita. No final, a discussão vem à
tona no diálogo do protagonista com a ex-namorada e para mim tudo está resumido
nessa fala que foi destacada: Ninguém
escolhe nada e mesmo assim a responsabilidade é nossa. Essa aparente
contradição me parece conter uma verdade preciosa. O protagonista do romance é
um veículo dessa perspectiva dentro da história do livro, mas assim como ele,
eu não possuo uma resposta satisfatória para o dilema. Eu gosto da pergunta.
Minha
intenção era que a história de desenrolasse de um ponto de vista colado à visão
do protagonista, mas em terceira pessoa. Acho que esse recurso dá uma sensação
interessante de ação acontecendo em tempo real. Foi uma escolha que me pareceu
ter sintonia com a história, com o teor dos temas tratados, com a incapacidade
do personagem de lembrar rostos humanos e com o tipo de impressão estética que
eu pretendia causar. Por isso a narrativa em terceira pessoa no tempo presente,
e também o uso das notas de rodapé para acolher os poucos flashbacks, mensagens e pontos de vistas externos ao protagonista.
E do meu ponto de vista, a prosa nem é tão direta assim. Tem umas firulas no
livro”.
Perguntado
se havia referência autobiográfica na obra, Daniel diz que a mistura de vida do
autor e temática dos romances não é uma obsessão da literatura contemporânea e
sim uma obsessão do leitor contemporâneo (e da crítica, e da imprensa cultural,
etc.). Na literatura isso sempre foi comum, é quase inevitável. Qualquer
artista parte da experiência subjetiva e da sua visão de mundo particular para
criar. Não há como ser diferente. Isso não é a mesma coisa que autobiografia ou
autoficção, narrativas em que o vínculo da história com a realidade é assumido
e enfatizado. Não é o caso do Barba ensopada de sangue. Meu romance
tem vários pontos em comum com detalhes da minha experiência pessoal, desde a
própria ambientação em Garopaba, onde vivi por um tempo, até a paixão do
protagonista pela natação, mas o enredo e os personagens são em maior parte
fictícios.
Sobre
a possibilidade de que a releitura do primeiro capítulo dê ao romance uma nova
perspectiva, Daniel responde: o que me interessava era investigar como uma vida
prosaica e anônima pode se converter em mito ou lenda numa pequena comunidade.
A isso, soma-se o tema da família e suas relações com a identidade pessoal. O
avô do personagem se tornou um mito local e isso começa a acontecer também com
o neto na medida em que ele procura investigar a verdadeira história do avô. A
ideia era justamente essa, que a breve introdução do livro pudesse ser
compreendida de outra maneira após o fim da leitura, comentando essa espécie de
transmissão do mito em uma narrativa que não tem nada de mitológico no seu
decorrer, até pelo contrário.