segunda-feira, 15 de junho de 2020

A MULHER QUE ESCREVEU A BÍBLIA


A voz feminina na escritura da Bíblia em
A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar

Maria do Rosário Andrade Chaves                 

A narradora e protagonista, para tentar solucionar um problema de relacionamento com o pai e com o homem que ama, procura ajuda de um terapeuta de vidas passadas. Ela se vê na corte do rei Salomão, envolvida em episódios bíblicos. Por ser feia e desejar o anonimato, é usado o adjetivo para nomeá-la.

Uma voz feminina se posiciona na defesa da voz da mulher

Este artigo tem como foco analisar o livro A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar, no que diz respeito à visão feminina no contexto em que a história se inscreve, na voz da narradora e personagem principal.
A fim de embasar teoricamente os pressupostos que norteiam a voz feminina como intermediária da narrativa, foram utilizados estudos e conceitos ligados à metalinguagem, ao dialogismo, ao humor e à carnavalização, teorias que se entrelaçam e se referem às relações de sentidos entre os enunciados, em que a palavra é sempre perpassada pela palavra do outro, dialogando com outras palavras, de acordo com as concepções desenvolvidas por Bakhtin (2011).

A VOZ FEMININA

A voz da narradora percorre toda a obra. Ela via aquele mundo, de séculos atrás, sob a perspectiva da mulher atual, por isso não concordava com a submissão das mulheres, obrigadas a se manterem constantemente preparadas para um possível chamado do rei. A feia também se revoltava com as péssimas condições em que viviam as concubinas mais velhas, descartadas após exercerem suas funções por muitos anos, desde a época de Davi, pai de Salomão. A sua voz surge em seus devaneios, nas reflexões acerca da vida, do amor, de Deus, assim como nas entrelinhas dos textos que escrevia de acordo com as instruções dos anciãos.
Judith Butler, a partir de ideias de Simone de Beauvoir, afirma que a mulher é conceituada pelo sexo - o sexo feminino - e que isso não a torna sujeito com uma identidade marcada. É preciso que se reconheça o feminino como um gênero, que seria o Outro, tendo em vista que o homem é reconhecido como um gênero universal. Dessa forma, restaria à mulher ser aquela que não é homem. E, além disso, a mulher é definida em relação ao homem e através do seu olhar.
O gênero universal ao qual Beauvoir se refere é uma construção que se estende até a atualidade, tendo em vista que, ao se referir ao ser humano, as pessoas dizem “o homem”, gênero em cuja instância a mulher se encontra inserida.
Quando a feia aprendeu a ler e escrever se tornou diferente, superior a todos aqueles, homens e mulheres, que não detinham esse saber. De forma que ela se transforma em mulher, como gênero, quando lhe é reconhecida essa diferença. A partir do momento que Salomão a incumbe da tarefa da escritura da história de sua gente, ela já não se acha mais tão feia, tem a certeza de que “descobria em mim uma oculta beleza, a beleza da inteligência, da cultura”.
A questão da identidade da mulher como gênero social e cultural pode ser vista nessa obra a partir das reflexões e atitudes da narradora. Antes de exercer a função de escritora da Bíblia, ela nada mais era que mais uma mulher na corte de Salomão. Para sua infelicidade, era uma mulher feia, com raras chances de ser chamada para passar a noite com o marido e consumar o casamento. Assim, nenhuma mulher, na época em que os fatos aconteceram, pensava em ser alguém, um sujeito com uma identidade. Para a sociedade, elas eram apenas objetos de desfrute do rei e de transações políticas e econômicas. “De acordo com a tradição e a lei”, um casamento consolidava uma aliança entre a Corte e a tribo, uma aliança política, uma vez que promovia proteção de ataques de tribos vizinhas e, além disso, as dívidas poderiam ser perdoadas ou renegociadas, de acordo com a conjuntura econômica. Era dessa maneira que as mulheres eram vistas e negociadas.
O diálogo, nas obras de Simone de Beauvoir, possibilita à filosofia reconhecer aspectos dos feminismos e colocá-los sob novos enfoques. Beauvoir se preocupava com a situação histórica das mulheres, considerando características de gênero, raça, etnia, classe social, participação política, opressão e alteridade, pois sabia que cada mulher vivencia suas próprias experiências de opressão e de exclusão. E é por meio do diálogo, expresso na escritura do livro de Salomão, que a mulher exerce um papel privilegiado naquela sociedade. E, embora não lhe fosse possível escrever como queria, era inteligente o bastante para se colocar nas entrelinhas dos textos, a fim de se fazer ouvir e tentar mostrar que a mulher precisava ser tratada com respeito.
Para escrever a história encomenda por Salomão, poderia usar o seu estilo, mas teria que se orientar pelo conteúdo ditado pelos escribas. “Eu fora derrotada, fragorosamente derrotada. Minhas esperanças de seduzir Salomão via texto tinham ido por água abaixo. Pior: agora os velhos assumiam o comando”. E ela não teria quaisquer chances contra eles. “Tudo que me restava era a submissão”.
A feia se via presa na corte, obrigada a escrever o que não queria. Almejava não somente a liberdade da palavra, mas sua liberdade como ser humano. Ao reconhecer que para Salomão ela era o seu projeto, a história que ele desejava eternizar, melhora sua autoestima, mas ao mesmo tempo ela não deixava de ser um meio, porque o seu papel não seria reconhecido, apenas o papel do rei.
Infere-se que a voz feminina perpassa A mulher que escreveu a Bíblia de forma constante, marcante, triste e firme em suas convicções, como um grito para mostrar a voz de todas as mulheres. Felizmente ela se cura, à custa de muita dor vivida no passado, e segue sua vida em liberdade.

A ESCRITA E A ESCRITURA

Nessa obra é recorrente o uso da metalinguagem, principalmente quando a narradora se refere à palavra, à escrita, ao texto, seus diálogos e sentidos, tendo em vista que a escrita havia mudado sua vida e lhe proporcionado uma forma de poder e de libertação. “Bastava-me o ato de escrever. Colocar no pergaminho letra por letra, palavra após palavra, era algo que me deliciava. Não era só um texto que eu estava produzindo; era beleza, a beleza que resulta da ordem, da harmonia”
Sobre seu relacionamento com o livro e Salomão, ela medita:
Escrever aquele livro não seria só uma realização para ele, seria uma realização para mim também. Templo eu jamais haveria de construir; mas a obra de que ele cogitava estava, sim, ao meu alcance, ainda que eu levasse toda a vida a escrevê-la. Nesse empreendimento estaríamos juntos, ele e eu. (...) O texto seria o refúgio em que habitaríamos, só ele e eu.


Ao primeiro narrador (o terapeuta) também pode ser observado o uso do recurso metalinguístico, quando ele busca a si mesmo na história, “procuro-me nos nomes próprios e nos nomes comuns, procuro-me nos verbos e nos advérbios, nos pontos, nas vírgulas, nas reticências. E não me acho. Assim como não me acho em lugar nenhum. Estou perdido”.
Com relação ao humor, de acordo com declarações do próprio Scliar[1], filho de judeu, nascido no Brasil, ele é uma particularidade do judeu. Scliar não seguia as tradições judaicas, embora tenha vivido em uma comunidade de judeus, em Porto Alegre. No seu livro A condição judaica, ele declara que “o humor peculiar do perseguido, que é uma defesa contra o desespero; (...) um humor de meio-sorriso, não de risos”. Percebe-se em A mulher que escreveu a Bíblia o humor perpassando a narrativa, muitas vezes de forma sutil.
O humor nessa obra é uma consequência da carnavalização que, segundo Bakhtin (2011), é a transposição do espírito carnavalesco para a arte, em que a palavra é representada e bivocal, em que se misturam dialetos, jargões, vozes e estilos, resultando em um romance polifônico.
Segundo Bakhtin (2015), entre as principais características do efeito carnavalesco, destaca-se o questionamento acerca da verdade, cujo conteúdo é a aventura de ideias; as discussões sobre questões relacionadas à morte e ao sentido da vida; a constituição do fantástico; o gosto pelas infrações às normas estabelecidas de conduta e de fala, em que surgem discursos cínicos, profanações desmistificadoras do sagrado e a presença de contrastes violentos. A linguagem não respeita limites, tornando-se obscena e excêntrica, permitindo que o reprimido possa ser exposto, tornando central aquilo que é marginal.
Além dos exemplos apresentados no decorrer deste artigo, pode-se perceber a subversão, ainda, quando a feia decide profetizar, projetar-se rumo ao futuro. Sua intenção é subverter a ordem na história de Salomão, uma vez que esgotara sua paciência em escrever sobre um passado repleto de dúvidas, em que havia grandes contrastes entre o povo e o rei em seu templo.
Outra marca relevante do efeito carnavalesco é a imagem grotesca do corpo em oposição à clássica, uma vez que no lugar de um corpo retratado pela beleza e proporções perfeitas, a narradora e personagem principal tem um rosto feio, com protuberâncias salientes, fato que sempre a deixara em uma condição marginalizada na comunidade em que vivia e, posteriormente, na corte do rei Salomão. Por outro lado, sua feiura lhe abriu caminhos, foi alfabetizada e se apaixonou pela escrita. De forma que a subversão, por meio do efeito carnavalesco, utiliza o poder da escrita dado a uma mulher.

RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE ENUNCIADOS

De acordo com Bakhtin (2011), a língua tem a propriedade de ser dialógica, mas não se refere ao diálogo face a face, e sim a todos os enunciados no processo de comunicação. A palavra é sempre perpassada pela palavra do outro, dialogando com outras palavras, assim como o enunciador, para constituir um discurso, considera o discurso de outro, presente no seu próprio discurso.
Dialogismo diz respeito às relações contratuais ou polêmicas, divergentes ou convergentes, de aceitação ou recusa, de acordo ou desacordo, estabelecidas para a solução de conflitos, promoção de consenso, busca de acordo ou entendimento. O discurso do outro pode ser inserido no enunciado de forma aberta (discurso direto e indireto, aspas e negação) ou por meio do discurso alheio não demarcado, em que as vozes se misturam, mas são claramente percebidas (discurso indireto livre, polêmica clara ou velada, paródia, estilização).
O terceiro objeto de estudo do dialogismo se refere ao sujeito, que se constitui em relação ao outro, apreende as vozes inseridas na sociedade em que o indivíduo vive e se relaciona. Na verdade, são várias vozes, tendo em vista que o sujeito entra em contato social em diferentes contextos.
Sobre o sujeito e sua função dialógica, Oliveira e Santos (2001) informam que o ato que produz a linguagem verbal é a enunciação (dizer), e o resultado é o enunciado (dito). Há que se fazer, ainda, a distinção entre o sujeito da enunciação, externo ao enunciado, e o sujeito do enunciado, interno a ele. Por exemplo, na frase: “O pastorzinho abriu a porta e desapareceu nas sombras do corredor”, o sujeito do enunciado é o pastorzinho, agente que pratica as ações; e o sujeito da enunciação é a narradora. Essas vozes ficcionais se misturam com uma voz que as agrega, que é a voz do autor, Moacyr Scliar.
A paródia com a Bíblia se apresenta logo no início da narrativa, no momento em que a narradora desqualifica o Gênesis, negando-o tanto por meio da linguagem coloquial, usada no século XX, quanto pelo conteúdo erótico, inexistente na Bíblia.
Há ainda uma paródia à parábola da semeadura quando ela se refere à enorme quantidade de sinais em seu rosto. Um vento muito forte poderia desprender as protuberâncias e levá-las para longe. “Se caísse entre pedras feneceria, se caísse na areia do deserto feneceria, se caísse na cratera de um vulcão feneceria – e ele fenecendo eu só me alegraria, mas se caísse em terra fértil...”.
E, finalmente, uma alusão ao verso do poeta Vinícius de Moraes “as feias que me desculpem, mas a beleza é fundamental”, que introduz o poema “Receita de Mulher”, se dá quando a mulher diz que “a feiura é fundamental, ao menos para o entendimento desta história. É feia, esta que vos fala. Muito feia”.



CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em A mulher que escreveu a Bíblia observa-se uma grande habilidade e empatia do escritor ao se colocar no lugar de uma mulher e elaborar sentimentos como se mulher fosse. A identidade feminina foi bem colocada como sujeito de um gênero que busca participar da história em que tinha um papel, pequeno, mas conquistado por meio da escrita e de sua perspicácia, identidade inserida em uma sociedade que a oprime e a exclui.
O papel submisso da mulher é colocado social e culturalmente na sociedade da época do rei Salomão e se apresenta como uma luta da narradora para se fazer ouvir e ser respeitada, valendo-se de sua posição, naquela época, para evocar sua voz de forma contestadora.
A escrita, a palavra e o texto, elementos destacados pela narradora, apresentam-se na medida certa para pontuar a importância do texto para escritor/leitor, já destacado no título do livro com o verbo “escrever”, e ressalta a relevância do conhecimento que a leitura proporciona. O ato da escrita e seus desdobramentos como texto, linguagem, diálogo, livro, sentidos, voltam-se ao próprio texto no movimento circular que a metalinguagem promove, a fim de destacar o poder e a libertação que a escrita proporcionara à narradora.
De acordo com o livro sagrado, a mulher foi criada a partir de uma parte do homem. Esse fato pode explicar como, já no contexto mitológico da criação do mundo, à mulher cabia um espaço secundário na sociedade. A visão machista se inscreve, portanto, na Bíblia, embora não exista confirmação científica para tal afirmativa. Assim, a subversão efetivada através da voz feminina estabelece um dos efeitos carnavalescos, uma vez que é essa voz que constrói e dialoga no texto.
O diálogo é marca constante nessa obra de Scliar porque todos os enunciados promovem a comunicação entre a narradora e o leitor. Assim, as relações de sentido que se estabelecem entre os enunciados estão presentes na voz feminina, por meio de uma linguagem que, submetida a ordens rígidas, inverte-se para processar uma mudança.
Considerando-se, ainda, a relevância da escrita da Bíblia e o próprio ato de escrever ressaltar a importância da palavra e do texto, pode-se inferir que a escrita fez com que a narradora refletisse sobre seus problemas e encontrasse as respostas para eles.  Dessa forma, ela encontrou a solução dos seus problemas tanto na vida passada quanto na real e seguiu o seu caminho.
Infere-se que a voz feminina é a que se destaca em A mulher que escreveu a Bíblia, ainda que o gênero universal, o masculino, englobe o feminino. A voz feminina, geralmente deixada à margem, se coloca à frente da narrativa, questionando sua trajetória na provável vida passada na corte do rei Salomão.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
BRAIT, Beth (org). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. São Paulo: Beca Produções Culturais Ltda, 1999.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006
KOCH, Ingedore Vilaça, BENTES, Ana Cristina e CAVALCANTE, Mônica. Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2012.
MEDEIROS, Fernanda. Dialogismo e ironia em A mulher que escreveu a Bíblia. Disponível em < www.pos-graducacao.bib.uepb.edu.br/ppglif/...2014/Fernanda Medeiros.pdf> acessado em 16 set. 2015>
SANTOS, Luis A. Brandão. OLIVEIRA, Silvana Pessôa de. Sujeito, tempo e espaço ficcionais: introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SCLIAR, Moacyr. A mulher que escreveu a Bíblia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SCLIAR, Moacyr. A condição judaica. Porto Alegre: L&PM Editores, 1985.
SCLIAR, Moacyr. Judaísmo: dispersão e unidade. São Paulo: Ática, 2001.
SCLIAR, Moacyr. O texto, ou: a vida – uma trajetória literária. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.



[1] Em seu livro autobriográfico O texto, ou: a vida – uma trajetória literária, Scliar fala da importância da escrita e da leitura em sua vida. Por isso, a referência constante ao texto é uma característica que o autor colocou em sua personagem e narradora.

ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA LITERATURA-Conhecimento prático - ed. 69 (2017 ou 2018)

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