quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Ensaio sobre a Lucidez, José Saramago

Em Ensaio sobre a Lucidez, assim como no livro Ensaio sobre a Cegueira, não ficamos sabendo o nome da cidade onde se passa a trama, nem os nomes das pessoas, caracterizadas pela profissão ou por sua ocupação na sociedade. Da mesma forma, não nos é informado quando os fatos aconteceram. Esse recurso deixa livre a imaginação do leitor, que pode contextualizar a obra de acordo com seus próprios conhecimentos.
É dia de eleições municipais em uma capital. A existência de um primeiro ministro na condução do país nos mostra que se trata de um regime democrático parlamentar. Chove muito, o que causa um grande número de abstenções. Além disso, 70% dos votos são em branco. Nova eleição é marcada para o próximo domingo. A população comparece em peso. O governo coloca espiões nas filas para ver se alguém está incentivando o voto em branco. Na apuração dos votos, grande surpresa: 83% votam em branco, abstenções zero, votos nulos, zero.
O governo acredita que os votos em branco vieram desferir um golpe brutal contra a normalidade democrática. Desejavam punir os conspiradores, quando na verdade nenhum crime havia sido cometido. “Era totalmente desprovido de sentido suspender direitos a quem não havia cometido outro crime que exercer precisamente um deles.”
O governo começa a investigar e a prender pessoas. Declara-se o estado de sítio, mas a população continua a viver normalmente. O governo decide deixar a capital e transferir o governo para uma cidade vizinha, deixando, ainda assim, a cidade cercada. A saída do governo não causa espanto na população que ilumina o caminho para os carros das autoridades.
Para alarmar os habitantes e colocar a culpa em alguém, porque é regra do poder que, às cabeças, o melhor será cortá-las antes que comecem a pensar, é lançada uma bomba perto de uma das estações do metro. A bomba lhes cai no colo. A população se une ainda mais. Sabe que a provocação veio de fora. Dos que abandonaram a cidade. Mesmo quando toda a mídia insinua o contrário, insinuando um ataque terrorista.
Os governantes relembram a cegueira de quatro anos atrás. O voto branco seria uma manifestação de cegueira tão destrutiva como a outra, ou de lucidez, disse o ministro da justiça. Uma manifestação de lucidez por parte de quem a usou. Poucos dias depois, uma carta chega às mãos do presidente. O autor conta que, por ocasião da cegueira, uma mulher não havia cegado, podendo ser considerada suspeita, pois além de não ter cegado, tinha matado uma pessoa.
São destacados três policiais para averiguar a denúncia. Essa diligência fora desenhada para fazer de um inocente um culpado. Na experiência do ofício policial, sabia-se que as meias palavras existem para dizer o que as inteiras não podem. Nas palavras do ministro do interior, as provas que não há, afinal estão lá. Há casos em que a sentença já está escrita antes do crime.
Eles começam a investigar, mas não encontram nada suspeito. Como o governo insistisse em encontrar o culpado, o comissário alerta a mulher que não cegara sobre as intenções governamentais de querer culpá-la pelos votos em branco. Ele descreve toda a verdadeira história sobre os votos, a fuga, os erros e os medos do governo, as investigações, e entrega o dossiê a um pequeno jornal. Um dia após a publicação das suas denúncias, ele é assassinado. A partir daí, começam os desentendimentos entre os membros do governo, com demissões de alguns e acumulação de funções por outros.
No dia seguinte ao assassinato do comissário, dois policiais à paisana vão à casa do oftalmologista e o levam algemado para prestar depoimentos. A mulher fica sozinha em casa. O mesmo homem que havia assassinado o comissário se coloca em um prédio na mesma direção do apartamento da mulher do médico e, quando ela chega à janela, ele dispara dois tiros fatais e ainda um terceiro, que mata o cão das lágrimas, Constante era seu nome.
Fatos reais:
Dois fatos históricos podem nos remeter a acontecimentos da narrativa. O primeiro é a vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, fugindo de Portugal para não enfrentar as tropas de Napoleão Bonaparte. Deixou o país órfão e trouxe toda a nobreza para o Brasil, escoltados pelos ingleses, com quem fizeram acordos.
No dia 1º de maio de 1981, acontecia um show em homenagem aos trabalhadores, no Riocentro. Dois militares levavam, dentro de um Puma, uma bomba para colocar no local e culpar “terroristas”. Entretanto, a bomba explodiu no colo do sargento Guilherme do Rosário, que morreu na hora, e deixou o capitão Wilson Machado gravemente ferido. Somente em 1999 o caso foi reaberto e desvendado.
 “Os humanos são universalmente conhecidos como os únicos animais capazes de mentir. Às vezes o fazem por medo, às vezes por interesse ou como a única maneira de defenderem a verdade.”
 “Sítio significa cerco, ou assédio. Então, ao declararmos estado de sítio é como se tivéssemos a dizer que a capital do país se encontra sitiada, cercada, assediada por um inimigo... quando a verdade é que esse inimigo não está fora, mas dentro.”
 “... neste mundo tudo é possível. Imagino que os nossos melhores especialistas em tortura também beijam os filhos quando chegam em casa, e alguns chegam até a chorar no cinema.”
“Prudente é não despertar o dragão que dorme, estúpido é aproximar-se dele quando está acordado.”
“A lucidez é uma condição mental que nos prepara para atingir melhores desempenhos em nossa vida. Lucidez vem da palavra luz e quer dizer clareza, claridade. A lucidez é racional, adquirida pelo conhecimento. Enquanto em Ensaio sobre a cegueira Saramago descreve uma cidade em que as pessoas ficam cegas, literalmente, por considerá-las cegas, metaforicamente, Ensaio sobre a Lucidez mostra a escura combinação entre a democracia vazia inventada pela burguesia e o poder da grande mídia para manter a dominação. O voto em branco representa um nível de consciência, o direito ao exercício de cidadania.”

Um comentário:

  1. Ler suas resenhas é relembrar os livros que lemos nas aulas de literatura portuguesa. Depois de ler Saramago, de degustar seu estilo , fica difícil ler outros livros.

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