terça-feira, 15 de novembro de 2016

O calor das coisas

O livro O calor das coisas, de Nélida Piñon, contém treze contos. Em todos há referência e reverência às palavras, em seus sentidos contextualizados, seus efeitos transformadores e as emoções que provocam. O calor, provocado pelo poder do fogo, transforma coisas físicas e espirituais. De acordo com a simbologia, o fogo simboliza renascimento, renovação, purificação, regeneração. Em rituais de morte e renascimento, ele é associado ao seu princípio antagônico: a água. A purificação pelo fogo é complementar à feita por meio da água, que é regeneradora. Mas o fogo é diferente da água porque simboliza, ainda, a purificação através da compreensão até a sua forma mais espiritual, pela luz e pela verdade.
No conto que dá nome ao livro são várias as nuances pelas quais a palavra passa. Todas as palavras foram selecionadas para expressar o sentimento de calor, que tanto pode expressar a emoção do aconchego, como provocar dor (sufocar). O narrador usa metáforas com elementos que lembram o fogo para expressar como era Oscar, sempre envolvido com as palavras dos outros, que o feriam. Quando ele descobre o poder transformador da palavra, ele desabafa todas as suas angústias. Assim, por meio de seu discurso, ele resgata sua identidade e expõe seu poder diante do mundo. No entanto, devido ao seu passado, ele toma esse poder não só como sua salvação, mas também como dominação.
O menino ganha o apelido de pastel porque é gordo e gosta de comer muito essa iguaria, preparada com gordura quente. Não satisfeito com sua gordura e desejando ser aceito pela comunidade em que vive, ele se submete a rigorosos regimes, inclusive passando dias bebendo água, princípio antagônico ao fogo no sentido de renascimento. Mas ele não consegue emagrecer, apesar do sacrifício. Assim, ele aceita a sua sina, mas esquece o seu próprio nome, perde a sua identidade para dar lugar à identidade que lhe foi imposta. Sem identidade como Oscar, ele teme e espera que seus amigos devorem sua carne assim como devoraram o seu ser. Muitas vezes revoltava-se contra o destino “que lhe impusera um corpo em flagrante contraste com a alma delicada e magra”. Sente-se inadequado em todas as situações, como se sua gordura mudasse de lugar todos os dias, dificultando o disfarce pelas roupas.
Sua mãe contribuía com o crescente aumento de seu peso, pois era ela que cozinhava os alimentos. Bolos, feijoadas e macarrão, em grandes quantidades, preparados com os temperos prediletos dela. Era dessa forma que ela lhe demonstrava amor e proteção.
“A expressão deste afeto, que seu disforme corpo não podia inspirar, arrastava Oscar para o quarto, amargurado pelo desgaste lento das palavras maternas, que só pretendiam atraí-lo para dentro da frigideira abrasada pelo zelo, paciência e fome”. Ela gostava de consolá-lo com as palavras que mais lhe feriam o coração: “ah, meu pastel amado!” Declaração que corroborava o pensamento da sociedade e que ele desprezava. Mas gostava de sorrir para compensar o sacrifício da mãe.
Quando se cansou de se sentir uma presa fácil para degustação de seus amigos, Oscar fingiu estar cego para pegar seus inimigos distraídos. Uma vez cego, não podia ver seu corpo no espelho. Dessa forma, enxergou seu coração, seu interior e descobriu o poder da palavra. A sua fome coincidia com uma voracidade verbal que sempre tivera e desconhecia, preocupado em se defender daqueles que queriam vê-lo em uma frigideira.
Ainda que no conto não se faça qualquer referência bíblica, nessa passagem pode ser feito um paralelo com a parábola, descrita nos evangelhos de Marcos e Mateus, em que Jesus diz que não é o que entra pela boca que contamina o homem, mas o que sai da boca. O que entra não pode contaminá-lo, pois não vai para o coração, mas o que sai vem do coração. Desvendando os segredos das palavras, Oscar tomou para si a sua identidade confiscada.

A mãe desconhecia esse novo filho, que era uma labareda empenhada em viver e que possuía um evidente jeito de carrasco. Essas metáforas indicam que Oscar tinha muita vontade de viver com energia. O jeito de carrasco fica por conta da mãe, pois ela havia sido egoísta com o filho, cultivando nele sentimentos negativos, para que ela pudesse ser a única a lhe salvar das injustiças exteriores. Ela via seu filho como homem pela primeira vez, aos trinta anos. Ele agora é que cuidaria dela, adotando as mesmas atitudes de vigiá-la, como ela sempre havia feito com ele. A dúvida ficaria com ela, pois Oscar sabia que a verdade vem de dentro, não de palavras proferidas pelos outros.

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