O
livro O calor das coisas, de Nélida
Piñon, contém treze contos. Em todos há referência e reverência às palavras, em
seus sentidos contextualizados, seus efeitos transformadores e as emoções que
provocam. O calor, provocado pelo poder do fogo, transforma coisas físicas e
espirituais. De acordo com a simbologia, o fogo simboliza renascimento,
renovação, purificação, regeneração. Em rituais de morte e renascimento, ele é
associado ao seu princípio antagônico: a água. A purificação pelo fogo é
complementar à feita por meio da água, que é regeneradora. Mas o fogo é
diferente da água porque simboliza, ainda, a purificação através da compreensão
até a sua forma mais espiritual, pela luz e pela verdade.
No
conto que dá nome ao livro são várias as nuances pelas quais a palavra passa.
Todas as palavras foram selecionadas para expressar o sentimento de calor, que
tanto pode expressar a emoção do aconchego, como provocar dor (sufocar). O
narrador usa metáforas com elementos que lembram o fogo para expressar como era
Oscar, sempre envolvido com as palavras dos outros, que o feriam. Quando ele
descobre o poder transformador da palavra, ele desabafa todas as suas
angústias. Assim, por meio de seu discurso, ele resgata sua identidade e expõe
seu poder diante do mundo. No entanto, devido ao seu passado, ele toma esse
poder não só como sua salvação, mas também como dominação.
O
menino ganha o apelido de pastel porque é gordo e gosta de comer muito essa
iguaria, preparada com gordura quente. Não satisfeito com sua gordura e
desejando ser aceito pela comunidade em que vive, ele se submete a rigorosos
regimes, inclusive passando dias bebendo água, princípio antagônico ao fogo no
sentido de renascimento. Mas ele não consegue emagrecer, apesar do sacrifício.
Assim, ele aceita a sua sina, mas esquece o seu próprio nome, perde a sua
identidade para dar lugar à identidade que lhe foi imposta. Sem identidade como
Oscar, ele teme e espera que seus amigos devorem sua carne assim como devoraram
o seu ser. Muitas vezes revoltava-se contra o destino “que lhe impusera um
corpo em flagrante contraste com a alma delicada e magra”. Sente-se inadequado
em todas as situações, como se sua gordura mudasse de lugar todos os dias,
dificultando o disfarce pelas roupas.
Sua
mãe contribuía com o crescente aumento de seu peso, pois era ela que cozinhava
os alimentos. Bolos, feijoadas e macarrão, em grandes quantidades, preparados
com os temperos prediletos dela. Era dessa forma que ela lhe demonstrava amor e
proteção.
“A
expressão deste afeto, que seu disforme corpo não podia inspirar, arrastava
Oscar para o quarto, amargurado pelo desgaste lento das palavras maternas, que
só pretendiam atraí-lo para dentro da frigideira abrasada pelo zelo, paciência
e fome”. Ela gostava de consolá-lo com as palavras que mais lhe feriam o
coração: “ah, meu pastel amado!” Declaração que corroborava o pensamento da
sociedade e que ele desprezava. Mas gostava de sorrir para compensar o
sacrifício da mãe.
Quando
se cansou de se sentir uma presa fácil para degustação de seus amigos, Oscar
fingiu estar cego para pegar seus inimigos distraídos. Uma vez cego, não podia
ver seu corpo no espelho. Dessa forma, enxergou seu coração, seu interior e
descobriu o poder da palavra. A sua fome coincidia com uma voracidade verbal
que sempre tivera e desconhecia, preocupado em se defender daqueles que queriam
vê-lo em uma frigideira.
Ainda
que no conto não se faça qualquer referência bíblica, nessa passagem pode ser
feito um paralelo com a parábola, descrita nos evangelhos de Marcos e Mateus, em
que Jesus diz que não é o que entra pela boca que contamina o homem, mas o que
sai da boca. O que entra não pode contaminá-lo, pois não vai para o coração,
mas o que sai vem do coração. Desvendando os segredos das palavras, Oscar tomou
para si a sua identidade confiscada.
A
mãe desconhecia esse novo filho, que era uma labareda empenhada em viver e que
possuía um evidente jeito de carrasco. Essas metáforas indicam que Oscar tinha
muita vontade de viver com energia. O jeito de carrasco fica por conta da mãe,
pois ela havia sido egoísta com o filho, cultivando nele sentimentos negativos,
para que ela pudesse ser a única a lhe salvar das injustiças exteriores. Ela
via seu filho como homem pela primeira vez, aos trinta anos. Ele agora é que
cuidaria dela, adotando as mesmas atitudes de vigiá-la, como ela sempre havia
feito com ele. A dúvida ficaria com ela, pois Oscar sabia que a verdade vem de
dentro, não de palavras proferidas pelos outros.
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