quinta-feira, 31 de março de 2016

O mercador de Veneza: comparação livro e filme


A peça O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, escrita no século XVI, será comparada, neste trabalho, ao filme homônimo, dirigido por Michael Radford em 2004. O tema das obras é o pagamento de uma dívida, contraída por Antônio, um cristão, a Shylock, um judeu. Essa dívida deveria ser quitada no período de dois meses e, se isso não acontecesse, Antônio pagaria como multa uma libra de sua carne. Essa estratégia foi utilizada pelo judeu para se vingar, uma vez que sempre fora maltratado por Antônio. Naquela época os judeus não podiam adquirir propriedades, por isso eles emprestavam dinheiro cobrando juros altos. Essa atividade causava repugnância aos cristãos habitantes de Veneza.
O empréstimo foi feito por Antônio, uma vez que ele não tinha dinheiro porque seus navios ainda não haviam retornado do mar, para ajudar seu amigo Bassânio, um jovem pródigo com sua fortuna que tinha urgência em viajar até Belmonte para se casar com Pórcia, filha de um homem bom e rico. Esse homem, mesmo morto,desejou interferir no destino da filha, deixando-lhe três caixas - uma de ouro, representando a ambição; outra de prata, o mérito e, por fim uma de chumbo, simbolizando o risco, e caberia ao pretendente mais inteligente e despretensioso encontrar o retrato da filha dentro de uma das caixas e se casar com ela. Já apaixonada por Bassânio, Pórcia sinaliza-lhe como escolher a caixa certa entoando uma canção com sons de sinos badalando com força (bronze, ferro ou chumbo!).
Na data marcada para o pagamento da dívida, os navios ainda não haviam chegado a Veneza, e Antônio não pôde cumprir o seu compromisso junto a Shylock. Em vista disso, o julgamento foi providenciado. Nesse dia, Shylock justifica a sua vingança por meio de um discurso de igualdade entre os homens, em que tanto os cristãos quanto os judeus são seres humanos, sujeitos a erros e acertos. Ele conclui que se os cristãos podem ser pessoas más e vingativas, os judeus também podem ser assim. Esse raciocínio em defesa da vingança é falso, tendo em vista que Shylock não poderia generalizar com argumentos envolvendo toda a humanidade a partir de suas experiências e observações particulares. Ao ser questionado sobre o que faria com a carne, ele explica que ela não teria muita serventia, senão para ser usada como isca em pescaria, mas que ela alimentaria sua vingança. Shylock estava bastante exaltado também porque Jéssica, sua filha, havia fugido com um cristão e levado grande parte de sua fortuna.
Durante o julgamento, Pórcia e Nerissa se apresentam ao Doge como juiz e assistente, respectivamente. Elas se vestem com roupas masculinas, porque somente os homens tinham o poder das palavras e das leis. Dessa forma Pórcia colabora para o desfecho jurídico, valendo-se do poder da lei e de suas argumentações, alterando toda a situação.
Como toda obra literária, o autor trabalha com o simbólico, com a subjetividade, relação marcada pela contradição que todo ser mantém com o outro. O judeu Shylock e o cristão Antônio se relacionam por conveniência; Pórcia e Bassânio assumem o papel de mulher determinada e homem frágil e imaturo; Jéssica se divide entre o ódio de ter o sangue judeu herdado do pai e o amor proibido por um cristão.
Livro e filme trazem reflexões acerca de valores humanos, as lutas entre o bem e o mal, o justo e o injusto, sendo irrelevante se são cristãos ou judeus. Tratam, ainda, de elementos espirituais como da insignificância da carne humana, da precariedade da vida terrena e do sentimento de que viver significa arriscar-se.Em ambas as obras, há realce de sentimentos negativos como a tristeza, a solidão, o preconceito, mas, principalmente, a clemência, esta com o intuito de chamar a atenção sobre a justiça divina.
De acordo com a socióloga Cristina Costa[1], as transformações do Renascimento, época em que o individualismo era estimulado e o homem assume seu papel na história como agente dos acontecimentos, se expressaram na arte e trouxeram aos personagens de Shakespeare “as dificuldades humanas diante de sentimentos contraditórios e da liberdade de ação”. Segundo a autora, em Romeu e Julieta,,há um conflito entre o indivíduo e a sociedade, uma vez que o drama dos amantes de Verona decorre da oposição entre as regras sociais vigentes e a vontade individual dos heróis”.
Tanto a peça quanto a película divisam duas premissas, a legalidade e a justiça. A partir dessas premissas, pode-se inferir que o poder da lei é maior que o da justiça, fato universal e presente em nossos dias. Constata-se, ainda, que as leis são feitas pelos homens e, portanto, imperfeitas, enquanto a justiça é divina, sujeita aos desígnios de Deus, ser superior. De acordo com o professor Hans Kelsen[2], “a tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica à tarefa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, criar as únicas leis justas (certas). Assim como da Constituição, através de interpretação, não podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as únicas sentenças corretas”. Sobre justiça cabe ressaltar opinião do também professor Chaïm Perelman[3], “[...] para que a pesagem (ato de distribuir justiça) seja feita de modo imparcial, desprovido de paixão – o que quer dizer sem temor, sem ódio e também sem piedade -, é necessário que a justiça tenha os olhos vendados, que não veja as consequências do que faz: dura Lex, sed Lex”.
Além de tratar das questões sobre valores e justiça, pode-se ampliar a comparação entre as obras, destacando-se algumas  (Há pequenas diferenças como sexualidade, tempo, o papel da mulher, a condição dos judeus, entre outros. Enquanto na tela a homossexualidade de Antônio e Bassânio é explícita, no livro, ela é sugerida. No filme, é feita uma contextualização da situação dos judeus, situando o espectador  historicamente. Informa-se que os judeus deveriam viver separados dos cristãos e usar uma boina vermelha para serem reconhecidos nas ruas. Em sua obra, Shakespeare narra apenas o fato de que os judeus são a escória da sociedade.
A questão do tempo não é coerente em nenhuma das artes, entretanto no teatro, por ser ao vivo, a passagem do tempo não traz estranhamento para a plateia, uma vez que cenas se sucedem, mudam-se os cenários e a obra pode ser compreendida. Essa compreensão acompanha também a leitura da peça. Com a intenção de se manter fiel ao texto, o filme apresenta situações desconexas, tendo em vista que a linguagem cinematográfica tem seus limites quando se trata de fazer adaptação de alguma obra literária.  As distâncias, por exemplo, chamam a atenção, porque os mesmos espaços são percorridos em tempos diferentes. O escritor Umberto Eco[4] fala sobre as duas linguagens e explica que “Também no filme, às vezes mais do que no romance, existem os “vazios” das coisas não ditas (ou não mostradas) que o espectador tem de preencher se quiser dar sentido à história. Aliás, se um romance pode ter páginas à disposição para tracejar a psicologia de uma personagem, o filme, não raro, tem de limitar-se a um gesto, a uma fugaz expressão do rosto, a uma fala de diálogo.”
O dramaturgo e o diretor realçam a inteligência e determinação de Pórcia, o que faz dela a heroína desta história. Ao direcionar a escolha da caixa certa, prova-se se tratar de uma mulher de caráter forte, que dissimula ser a escolhida quando na verdade a decisão é dela, fato sutilmente elaborado por Pórcia, não caracterizando traição aos desejos do pai. E ainda, é dela a iniciativa de ir a Veneza e defender Antônio no julgamento. No livro apreendemos sua personalidade por meio de suas atitudes e pensamentos, enquanto no filme contamos com os seus olhares.
Os recursos utilizados pelo autor de um livro e pelo diretor de um filme para delinear a personalidade de seus personagens são, com certeza, diferentes. Shakespeare O autor faz malabarismos com seus personagens, utilizando máscaras de todas as formas, para mostrar o grande jogo de aparências e hipocrisia existente naquela sociedade. Esse jogo pode ser visto também no cinema. Na tela, como as máscaras são visíveis, tem-se a impressão de que são alegorias, como as utilizadas em festas à fantasia ou nos carnavais.
As análises aqui apresentadas com certeza não abrangem a magnitude desta obra, considerando-se a grandiosidade de seu autor, que deixa na superfície do texto uma tragédia não consumada e nas entrelinhas uma gama de reflexões, críticas, paixões e valores inseridos no ser humano desde sempre. Michael Radford fez uma boa leitura, pois tal como a peça, ele também deixa lacunas para serem preenchidas pelo espectador.

REFERÊNCIAS
COSTA, Cristina. Sociologia: Introdução à ciência da sociedade. 3ª Ed. São Paulo: Moderna, 2005.
ECO, Umberto. A diferença entre livro e filme. Entrelivros, São Paulo, n. 7, p.98, nov. 2005.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: nova retórica. São Paulo; Martins Fontes, 1998.
RADFORD, Michael. O mercador de Veneza. Califórnia Filmes, 2004.
SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. São Paulo: Martin Claret, 2006.





[1] Costa, Cristina. Sociologia: introdução à ciência da sociedade, 2005, p.30 e 39.
[2] Kelsen, Hans. Teoria pura do Direito, 2006, p.393
[3] Perelman, Chaïm. Lógica Jurídica: nova retórica, 1998, p.33
[4] A diferença entre livro e filme, publicado na revista EntreLivros em novembro de 2005, p.98

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