A
peça O Mercador de Veneza, de William
Shakespeare, escrita no século XVI, será comparada, neste trabalho, ao filme
homônimo, dirigido por Michael Radford em 2004. O tema das obras é o pagamento
de uma dívida, contraída por Antônio, um cristão, a Shylock, um judeu. Essa
dívida deveria ser quitada no período de dois meses e, se isso não acontecesse,
Antônio pagaria como multa uma libra de sua carne. Essa estratégia foi utilizada
pelo judeu para se vingar, uma vez que sempre fora maltratado por Antônio. Naquela
época os judeus não podiam adquirir propriedades, por isso eles emprestavam
dinheiro cobrando juros altos. Essa atividade causava repugnância aos cristãos
habitantes de Veneza.
O
empréstimo foi feito por Antônio, uma vez que ele não tinha dinheiro porque
seus navios ainda não haviam retornado do mar, para ajudar seu amigo Bassânio,
um jovem pródigo com sua fortuna que
tinha urgência em viajar até Belmonte para se casar com Pórcia, filha de um
homem bom e rico. Esse homem, mesmo morto,desejou
interferir no destino da filha, deixando-lhe três caixas - uma de ouro,
representando a ambição; outra de prata, o mérito e, por fim uma de chumbo,
simbolizando o risco, e caberia ao pretendente mais inteligente e despretensioso
encontrar o retrato da filha dentro de uma das caixas e se casar com ela. Já
apaixonada por Bassânio, Pórcia sinaliza-lhe como escolher a caixa certa
entoando uma canção com sons de sinos badalando com força (bronze, ferro ou
chumbo!).
Na
data marcada para o pagamento da dívida, os navios ainda não haviam chegado a
Veneza, e Antônio não pôde cumprir o seu compromisso junto a Shylock. Em vista
disso, o julgamento foi providenciado. Nesse dia, Shylock justifica a sua
vingança por meio de um discurso de igualdade entre os homens, em que tanto os
cristãos quanto os judeus são seres humanos, sujeitos a erros e acertos. Ele
conclui que se os cristãos podem ser pessoas más e vingativas, os judeus também
podem ser assim. Esse raciocínio em defesa da vingança é falso, tendo em vista
que Shylock não poderia generalizar com argumentos envolvendo toda a humanidade
a partir de suas experiências e observações particulares. Ao ser questionado
sobre o que faria com a carne, ele explica que ela não teria muita serventia,
senão para ser usada como isca em pescaria, mas que ela alimentaria sua
vingança. Shylock estava bastante exaltado também porque Jéssica, sua filha,
havia fugido com um cristão e levado grande parte de sua fortuna.
Durante
o julgamento, Pórcia e Nerissa se apresentam ao Doge como juiz e assistente,
respectivamente. Elas se vestem com roupas masculinas, porque somente os homens
tinham o poder das palavras e das leis. Dessa forma Pórcia colabora para o
desfecho jurídico, valendo-se do poder da lei e de suas argumentações, alterando
toda a situação.
Como
toda obra literária, o autor trabalha com o simbólico, com a subjetividade, relação
marcada pela contradição que todo ser mantém com o outro. O judeu Shylock e o
cristão Antônio se relacionam por conveniência; Pórcia e Bassânio assumem o
papel de mulher determinada e homem frágil e imaturo; Jéssica se divide entre o
ódio de ter o sangue judeu herdado do pai e o amor proibido por um cristão.
Livro
e filme trazem reflexões acerca de valores humanos, as lutas entre o bem e o
mal, o justo e o injusto, sendo irrelevante se são cristãos ou judeus. Tratam,
ainda, de elementos espirituais como da insignificância da carne humana, da
precariedade da vida terrena e do sentimento de que viver significa arriscar-se.Em
ambas as obras, há realce de sentimentos negativos
como a tristeza, a solidão, o preconceito, mas, principalmente, a clemência, esta
com o intuito de chamar a atenção sobre a justiça divina.
De
acordo com a socióloga Cristina Costa[1], as
transformações do Renascimento, época em que o individualismo era estimulado e
o homem assume seu papel na história como agente dos acontecimentos, se
expressaram na arte e trouxeram aos personagens de Shakespeare “as dificuldades
humanas diante de sentimentos contraditórios e da liberdade de ação”. Segundo a
autora, em Romeu e Julieta,,“há um conflito entre o indivíduo e a sociedade,
uma vez que o drama dos amantes de Verona decorre da oposição entre as regras
sociais vigentes e a vontade individual dos heróis”.
Tanto
a peça quanto a película divisam duas premissas, a legalidade e a justiça. A
partir dessas premissas, pode-se inferir que o poder da lei é maior que o da
justiça, fato universal e presente em nossos dias. Constata-se, ainda, que as
leis são feitas pelos homens e, portanto, imperfeitas, enquanto a justiça é
divina, sujeita aos desígnios de Deus, ser superior. De acordo com o professor
Hans Kelsen[2],
“a tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa
(certa) ou o único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica à
tarefa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, criar as únicas leis
justas (certas). Assim como da Constituição, através de interpretação, não
podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por
interpretação, obter as únicas sentenças corretas”. Sobre justiça cabe
ressaltar opinião do também professor Chaïm Perelman[3],
“[...] para que a pesagem (ato de distribuir justiça) seja feita de modo
imparcial, desprovido de paixão – o que quer dizer sem temor, sem ódio e também
sem piedade -, é necessário que a justiça tenha os olhos vendados, que não veja
as consequências do que faz: dura Lex,
sed Lex”.
Além
de tratar das questões sobre valores e justiça, pode-se ampliar a comparação
entre as obras, destacando-se algumas (Há
pequenas diferenças como sexualidade, tempo, o papel da mulher, a condição dos
judeus, entre outros. Enquanto na tela a homossexualidade de Antônio e Bassânio
é explícita, no livro, ela é sugerida. No filme, é feita uma contextualização
da situação dos judeus, situando o espectador
historicamente. Informa-se que os judeus deveriam viver separados dos
cristãos e usar uma boina vermelha para serem reconhecidos nas ruas. Em sua
obra, Shakespeare narra apenas o fato de que os judeus são a escória da
sociedade.
A
questão do tempo não é coerente em nenhuma das artes, entretanto no teatro, por
ser ao vivo, a passagem do tempo não traz estranhamento para a plateia, uma vez
que cenas se sucedem, mudam-se os cenários e a obra pode ser compreendida. Essa
compreensão acompanha também a leitura da peça. Com a intenção de se manter
fiel ao texto, o filme apresenta situações desconexas, tendo em vista que a
linguagem cinematográfica tem seus limites quando se trata de fazer adaptação
de alguma obra literária. As distâncias,
por exemplo, chamam a atenção, porque os mesmos espaços são percorridos em
tempos diferentes. O escritor Umberto Eco[4] fala
sobre as duas linguagens e explica que “Também no filme, às vezes mais do que
no romance, existem os “vazios” das coisas não ditas (ou não mostradas) que o
espectador tem de preencher se quiser dar sentido à história. Aliás, se um
romance pode ter páginas à disposição para tracejar a psicologia de uma
personagem, o filme, não raro, tem de limitar-se a um gesto, a uma fugaz
expressão do rosto, a uma fala de diálogo.”
O
dramaturgo e o diretor realçam a inteligência e determinação de Pórcia, o que
faz dela a heroína desta história. Ao direcionar a escolha da caixa certa,
prova-se se tratar de uma mulher de caráter forte, que dissimula ser a
escolhida quando na verdade a decisão é dela, fato sutilmente elaborado por
Pórcia, não caracterizando traição aos desejos do pai. E ainda, é dela a
iniciativa de ir a Veneza e defender Antônio no julgamento. No livro
apreendemos sua personalidade por meio de suas atitudes e pensamentos, enquanto
no filme contamos com os seus olhares.
Os
recursos utilizados pelo autor de um livro e pelo diretor de um filme para delinear
a personalidade de seus personagens são, com certeza, diferentes. Shakespeare O
autor faz malabarismos com seus personagens, utilizando máscaras de todas as
formas, para mostrar o grande jogo de aparências e hipocrisia existente naquela
sociedade. Esse jogo pode ser visto também no cinema. Na tela, como as máscaras
são visíveis, tem-se a impressão de que são alegorias, como as utilizadas em
festas à fantasia ou nos carnavais.
As
análises aqui apresentadas com certeza não abrangem a magnitude desta obra,
considerando-se a grandiosidade de seu autor, que deixa na superfície do texto
uma tragédia não consumada e nas entrelinhas uma gama de reflexões, críticas,
paixões e valores inseridos no ser humano desde sempre. Michael Radford fez uma
boa leitura, pois tal como a peça, ele também deixa lacunas para serem
preenchidas pelo espectador.
REFERÊNCIAS
COSTA,
Cristina. Sociologia: Introdução à ciência da sociedade. 3ª Ed. São
Paulo: Moderna, 2005.
ECO,
Umberto. A diferença entre livro e filme. Entrelivros, São Paulo, n. 7, p.98,
nov. 2005.
KELSEN,
Hans. Teoria pura do direito. 7ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PERELMAN,
Chaïm. Lógica Jurídica: nova retórica. São Paulo; Martins Fontes, 1998.
RADFORD,
Michael. O mercador de Veneza. Califórnia Filmes, 2004.
SHAKESPEARE,
William. O mercador de Veneza. São Paulo: Martin Claret, 2006.
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