sexta-feira, 29 de julho de 2011

Toda arte se completa - "O Bobo" e "A vida dos outros"


O romance O Bobo, de Alexandre Herculano, narra um período da independência de Portugal, no qual o filho de D. Teresa, Afonso Henriques, lidera uma guerra contra Fernando Peres, o conde de Trava, amante de sua mãe. O relato acontece no castelo de Guimarães e no seu entorno. Os acontecimentos remetem ao período anterior e posterior da batalha de Aljubarrota. De acordo com o texto, se Afonso Henriques não houvesse tirado o poder das mãos de sua mãe, Portugal poderia ter sido uma província de Espanha por um longo tempo.

Dom Bibas, o bobo da Corte, tem um papel importantíssimo na trama. Diferentemente de como acontecia na Idade Média, em que o cargo de Truão correspondia ao dos censores da República Romana, no período em que se passa essa narrativa. O bobo era considerado uma pessoa de pouca valia, uma figura que refletia as feições hediondas de uma sociedade desordenada e incompleta.

Dom Bias vem mostrar sua perspicácia e provar que de bobo, no sentido literal da palavra, ele não tem nada. Enquanto durante os saraus ele explorava os ditos satíricos para a hilaridade dos cortesãos, fora dos salões voltava à obscuridade, ao animal doméstico que deveria varrer da alma todos afetos e sentimentos maiores para esquecer das injustiças do mundo. Sua posição dentro da Corte é estratégica, uma vez que tem acesso a todos os aposentos. Sempre atento, toma conhecimento de muitas decisões políticas importantes e de muitos segredos.

A parte romântica da história é protagonizada por Dulce, uma das sobrinhas de D. Tereza, que ama secretamente Egas Moniz, um cavaleiro pobre que luta ao lado de Afonso Henriques. Entretanto, o Conde de Trava incentiva um jovem cavaleiro, Garcia Bermudez, a se casar com a menina.

Egas Moniz vem ao castelo com uma mensagem de paz, mas o Conde de Trava ignora o pedido e prende o cavaleiro. Dulce sofre ao saber da prisão do amado. Fernando Peres, quando fica sabendo do amor de Dulce pelo cavaleiro, propõe a ela o casamento com Garcia Bermudez em troca da vida de Egas. Nesse ínterim, Egas acha que foi traído por Dulce. D. Bibas, para se vingar do conde contra os açoites de que fora vítima, decide ajudar o cavaleiro a fugir.

Durante a batalha, que não é narrada no romance, Egas mata Garcia Bermudez. Ao tomar conhecimento do acontecido, Dulce se sente traída pois não aprova a violência de seu amado, decide então se matar. Alguns dias se passam até que Egas é encontrado morto sobre o túmulo de Dulce.

Após a batalha em que Afonso Henriques sai vitorioso, Dom Bibas retoma suas funções no castelo, uma vez que um dos grandes trunfos da batalha havia sido a passagem secreta, conhecida apenas pelo Bobo, pela qual os soldados de Afonso Henriques entraram no castelo.

Alexandre Herculano, por meio de suas obras, faz críticas à sociedade da época, narrando seus costumes e valores. Apresenta, ao mesmo tempo, fatos históricos de grande relevância, com riqueza de detalhes. Para conquistar leitores, vale-se da forma platônica e trágica dos amores impossíveis.

Podemos encontrar elementos semelhantes a esta obra no filme “A vida dos outros”, dirigido por Florian Henckel Von Donnesmarck, principalmente no que se refere à posição social do Bobo relacionada com um agente da polícia política da Alemanha oriental que, ao ser encarregado de espionar a vida de um dramaturgo, acaba por tornar seu aliado, sem deixar de cumprir com suas obrigações junto ao governo.

A história se passa na Berlim socialista de 1984 e mostra os conflitos vivenciados pelos alemães descontentes com o regime político, com a separação da cidade e com a falta de liberdade. As pessoas são vigiadas quanto à transmissão de informações entre as duas cidades, assim como são impedidos de atravessarem a fronteira, a menos que obtenham prévia autorização após rigorosa investigação.

O agente da Stasi,  Gerd Wiesler, se instala em um apartamento onde faz  escutas e deve fazer relatórios diários sobre todos os passos do dramaturgo Georg Dreyman, suspeito de enviar informações para Berlim ocidental, assim como a vida de sua mulher, a atriz Christa-Maria Sieland e seus amigos.

 Wiesler, um homem solitário e triste, se deixa levar pelo fascínio da vida do dramaturgo e passa a viver a vida dos outros - de Dreyman e sua mulher e dos personagens de um livro de Brecht. Assim, começa a omitir, em seus relatórios, uma série de informações que incriminariam Dreyman, e que vai facilitar a publicação de um artigo comprometedor ao regime socialista.

São empreendidas buscas no apartamento de Dreyman, na tentativa de encontrar a máquina de escrever que teria sido usada para datilografia da reportagem. No meio das investigações, Christa-Maria, em troca das drogas que consumia, se tornara amante do ministro da Cultura e fora induzida a revelar o esconderijo da máquina. Mas Wiesler corre ao apartamento e tira a máquina do lugar, antes da polícia chegar. Christa-Maria, envergonhada e arrependida de sua atitude, corre para a rua e entra na frente de um caminhão, vindo a morrer.

Anos mais tarde, o escritor descobre que seu apartamento havia sido grampeado e que  alguém do antigo regime o havia ajudado. Após investigações, escreve um livro e o dedica ao agente, que trabalhava como carteiro.  Wiesler se sente recompensado quando se depara com uma dedicatória para si mesmo, em código,  no famoso livro de Dreyman.

A arte sempre se transforma e nos surpreende. O ser humano, na espiral do tempo, se renova, se recicla e se surpreende. Um bobo da corte não poderia ser um homem ignorante e tolo, uma vez que tinha que conhecer bem seus superiores para saber como lhes agradar. Um homem solitário e compromissado com o seu trabalho pode tomar decisões contrárias ao que lhe é ordenado, desde que saiba equilibrar suas ações. Tudo isso nos leva a considerar os dois personagens, Dom Bias e Wiesler, dentro da perspectiva crítica sociológica, como dois homens solitários, inteligentes, que se valem da posição que ocupam na sociedade para buscarem a sobrevivência e dar um pouco de conforto a suas tão sofridas existências.


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